28/09/2006

Impressões de Madrid II

O que escrever ou como escrever sobre algo que não conhecemos. As ruas, os cheiros, as pessoas.São muito diferentes e muito distantes de meu mundo natural. Envolver-me nestes mundos é como cruzar uma fina película de plástico. Caminho pelas ruas milenares de Madrid, e ao mesmo tempo em que são profundamente cheias de histórias, não me dizem nada, não comparto dessa história. O cinza urbano, este sim me parece muito familiar, o barulho das avenidas, a fuligem da cidade que cresce, a voz dos que caminham na noite.

O sabor da comida cheia de especiarias e azeites desce em meu paladar de um modo peculiar. Sinto falta do tropicalismo de minhas frutas, da fartura do sabor da América. Me parece que a velhice européia impregna até os sabores. A verdura das frutas trazidas de longe, legumes que nem os próprios vendedores sabem o que são: “é fruta chinesa”!, chineses, mais milenares que a própria Madrid, que vivem em seu mundo, mais distante que o meu não fazem questão de se comunicar em espanhol.

Aqui percebo um mundo dentro de outro, por onde passo, ouço línguas que reconheço, outras que me soam como ruídos distantes, de terras que nunca verei. As Europas, Os povos. Em minha rua convivem alegremente colombianos, brasileiros, peruanos, chineses, árabes, indianos, paquistaneses, ingleses e o outros e outros e outros. Quantos são os povos que fazem Madrid? Quantos os sabores que ainda me falta provar?

Venho das Américas, do outro lado do atlântico, na minha terra a gente fala português, ou melhor brasileiro. Lá o meu café tem sabor de café da terra, e as frutas têm um suco doce e melado. Aqui, mesmo que tento, nunca deixarei de comparar, sempre estarei confrontando o novo com o antigo, a colônia com o colonizador. Sou uma estrangeira, mas mesmo assim não sinto aquele medo abissal, a saudade doida. Sinto distância, sinto ela infinita, mas não imortal.

12/09/2006

Impressões de Madrid I

Pela janela do meu quarto, posso ver, de um prédio antigo e um pouco mais baixo que o meu, partes de uma outra sala de jantar. Através da pequena janela arte deco, uma cortina de flores, um par de mãos brincando com uma caneta e um papel. Não existe rosto, só braços, um pedaço de mesa e mistério. A está hora, um cansaço paira sobre a cidade de Madri. Parece que o tempo para, as lojas estão fechadas, o trânsito tranqüilo, o calor escandaloso que permeia todos os ambientes, o gelo se desfaz rápido e a sensação é quase de uma claustrofobia, tamanha a densidade da secura do ar.
Através da outra janela, olho a calçada lateral do prédio menor. Lá fora dois bancos de praça, um senhor pintando umas telas.Sua voz penetra em meu quarto, que será que ele canta? Não consigo decifrar as suas palavras, mas canta alto, com força, olhando para as pessoas que por ele passam. Canta como que para estampar uma certa solidão, uma melancolia que talvez seja mais minha do que dele. Eu o conheço desde ontem, mas acredito que já está nesse banco, nessa mesma esquina, uma eternidade; anos a fio; estações inteiras. Com suas palhetas de cores foscas, pequenos quadros de pinturas abstratas. A sua música me faz companhia. Mas acho que o calor o venceu também, como venceu a toda a cidade. Calou-se, e por ora, só posso observar os seus quadros silenciosos. E tudo o que ouço é ao longe o vagaroso movimento da cidade.

09/09/2006

Bingo


No Bingo

O Bingo do bairro era o melhor da cidade, com letras escritas em néon azul e vermelho: Tropical City, O bingo dos Sonhos. E era dos sonhos mesmo, o prêmio mínimo da linha era 1.000 reais, e a cartela, nossa! Se cantasse bingo antes da 46 bola era batata! 12.000 reais, e depois tranqüilamente podia se ganhar, com paciência, 10.000 a cartela cheia. Ou seja, só louco para perder a oportunidade de sua vida. Foi lá que Dora, Doralice, conheceu Dinda; “ Apelido carinhoso de meus netos, meu nome mesmo é Rosalyce, com ipsulon ” Até os nomes eram parecidos e isso foi só o começo de uma grande amizade. Todas as tardes, Dora e Rosalyce se encontravam lá pelas 3, tomavam um café com conhaque e partiam para o bingo. Lá, entre uma partida e outra trocavam confidências sobre família, eventuais trabalhos, dicas sobre a casa e até, quem diria, coisas do coração. Num desses dias de bingo, Rosalyce ganhou um segundo bingo de 500 reais, e um pouco desapontada fez uma confissão para Dora, “Ai, Dora, ando tão cansada menina...” “ Cansada de quê?” perguntava Doralice, “ De tudo, já não tenho mais idade para cuidar de netos e no fundo, queria era mesmo contratar alguém que pudesse me ajudar...nessas coisas da casa, arrumar meu cabelo, me fazer a sopa de legumes, que Deus sabe onde eu coloquei a receita, aliás, só Deus pra saber metade das coisas que eu ando esquecendo”. Doralice então abriu um sorriso, o mais simpático que pode e como quem se sente a última samaritana disse, baixo, no ouvido de Rosalyce, “ Olha,não te falei isso antes, mas te falo agora, Rosalyce, eu, euzinha aqui, era enfermeira nos meus tempos de menina, claro que hoje não sou tão mais nova que você, mas se quiser adoraria ser sua acompanhante, afinal, somos amigas a tanto tempo, e eu te estimo tanto que...” Parou por um momento, alguém lá no fundo tinha cantado bingo, Dora olhou em volta, pois fazia um silêncio secular e disse: “ Eu posso cuidar de você Rosalyce. A gente faz um bom trato. Que que você acha?” Rosalyce quase chorou de tanta emoção, quanta bondade meu deus, quanta generosidade...Pediu uma água pro garçom e um pouco de sal. “ Ai Dora, que seria de mim sem você”.

Uma Semana Depois

Em poucos dias Doralice já estava íntima da casa de Rosalyce, esta já havia dado as cópias de todas as chaves, incluso a do armário de guloseimas no fundo da cozinha. Doralice fazia seus afazeres normais na casa, o café da manhã, um pouco de arroz com frango no almoço. Às três, as duas partiam para o bingo, onde ficavam até a noite, quando voltavam para a casa de Rosalyce, Dora a preparava a sopa de legumes, que Rosalyce já havia confessado que era melhor que a receita que ela tinha perdido anos atrás.

***
A casa de Rosalyce era uma dessas casas antigas em um dos pontos mais altos e mais centrais do bairro, uma casa que ela tinha herdado do marido quando o pobrezinho faleceu, consta que foi atropelamento, “ Mas eu não tiro da minha cabeça, Dora, que o Joca morreu mesmo foi de mal olhado. Alguém fez que fez, que meu marido morreu, assim, sem mais nem menos.” Dora, no fundo, gostava de Rosalyce, eram boas companheiras de bingo, as conversas sempre duravam horas, infelizmente, e isso realmente pesou na sua decisão: Rosalyce não a pagava muito, o trato tinha sido justo: Um salário e três partidas de bingo ao mês. Rosalyce não podia pagar muito mais que isso, além de ser aposentada, pagava para Dora com um dinheiro que havia guardado por anos, tanto do bingo como o que seu filho mandava todos os meses para ela, para ser usado em um caso de emergência, como este.

A Decisão

Um dia Dora chegou muito mais cedo que o normal na casa de Rosalyce, ao longe ela podia ver que Rosalyce estava distraída brincando com seus netos no jardim. Silenciosamente, foi até o quarto e, com a chave reserva que tinha feito abriu o armário onde Rosalyce guardava suas economias. Muito surpresa ficou Doralice quando, ao abrir o armário, nada encontrou a não ser uma caixa com uma coleção de broches art-deco. Um mau humor tomou conta de Dora, que por todo esse dia mal conversou com Rosalyce. “ Nossa, Dora, que que aconteceu com você hoje? Salgou o arroz menina, que chega que me dói a garganta.”, a este comentário Doralice respondeu dizendo apenas que estava gripada, e por isso errou na dosagem. “ Rosalyce, que quê você acha da gente ir um pouco mais cedo hoje ao bingo? Ouvi dizer que os prêmios das duas vão ser melhores que o prêmios das três da tarde....”, “ Ai, Dora, não sei.” “ Que não sabe, boba” disse Dora, vai querer perder essa change? Lembra da última vez que fomos, foi uma maravilha. Rosalyce se lembrava da sorte que teve aquele dia no bingo, se arrumou, colocou perfume, entraram no carro e foram ao bingo. A todo o momento Doralice ficou distante , Rosalyce tentava animá-la pagando umas cartelas a mais do que de costume. Mas nada, de repente, Dora se levanta bruscamente, vai ao banheiro e quando volta diz “ Vamos querida, vamos embora, este bingo está uma porcaria hoje.” Rosalyce não querendo estragar mais ainda o humor de Dora, e já prevendo a sua sopa salgada no jantar, não disse nada e se foram.

O Acontecimento.

Chegando em casa Rosalyce foi ver tevê e acabou pegando no sono, e Dora foi fazer a sopa. Ao perceber que Rosalyce já dormia, Dora foi à sala, pegou uma almoçada e pensou “ É hoje que eu mato essa velha!”. Bem devagar foi se aproximando de Rosalyce, que roncava profundamente. Mas, inesperadamente, acorda e dá de cara com Dora e uma almofada perto de sua cara.
“ Mas Dora, que quê se passa aqui? O que está acontecendo?”
“Ora Rosalyce, não se faça de boba, cadê todo aquele dinheiro guardado, cadê?’
“ Mas Dora, por que? Por que?”
“ Chega Rosalyce, boa noite.”
“Não Dora, Não..”

A voz de Rosalyce foi sumindo aos poucos, com força Dora sufocava sua cabeça contra a almofada. Ao perceber que a velha estava morta, juntou tudo o que podia e, facilmente descobriu que a velha, oras essas, tinha guardado o resto do dinheiro em um pote de biscoito. “ Que tola” ria-se Dora. Sem pensar duas vezes, pegou o carro e se mandou pro bingo. Pobre Rosalyce, que morreu sem saber ela que o grande prêmio não era o das duas, mas sim os da sete da noite.

07/09/2006

Solidão é Elementar.

Quem mais entraria por aquela porta? Talvez, mas somente talvez, existisse a possibilidade de ninguém entrar lá. Nunca mais. E um dia a espera se tornaria obsessão, e a obsessão solidão e esta em angústia. Daí ela teria que ligar para todas aquelas amigas com as quais não fala há anos. E teria que falar porque está ligando. Seria muito mais difícil do que simplesmente ficar esperando. A eterna espera, a espera poética, a espera dramática, a espera crua, dolorida. Ainda não sabia qual delas estava sentindo. Só sabia que sabia aquilo. Faltava algo mais e isso causava toda essa problemática acima. Quando finalmente começasse a escutar o tic-tac do relógio de pulso escondido na gaveta de calcinhas, era hora de sair do transe, de largar todas essas idéias de lado. “Morar sozinha é uma merda”.Essa hora crucial que é as três da tarde do sábado, quando tudo para, momento de transição da parte do dia, para a parte da noite. Não queria mais preencher mais essas três horas que faltavam para o anoitecer com coisas úteis. “Terei que esperar, esperar, esperar”.Talvez por que a sua mudança tenha sido tão repentina, não havia passado em sua cabeça que existiria o momento da solidão, quando os móveis, o carpete, a lâmpada começam a tomar conta do espaço de um modo particular, como se esses objetos não fizessem parte somente da estrutura da casa, mas de si. Eles, mais que ela, pertenciam àquele mundo. Levantou-se, ligou o rádio, ensaiou olhar para a cozinha e ver se lhe apetecia lavar os pratos. Não, aquilo não dava tesão nela, para ela, limpar a casa para preencher o tempo era coisa de Madalena, e ela, obviamente, não cabia àquele posto. Olhou para porta, pelo olho-mágico podia ver a vizinha entrando no apartamento da frente com as compras da semana, e seus três filhos carregando, cada uma sacolinha: maçãs da Mônica, suquinhos de soja, balinhas de hortelã. “ Será que seu tivesse filhos ia ser melhor? Me sentiria menos só, menos angustiada?” , “ Talvez fosse pior, mãe solteira, esperando que algum se compadecesse da minha situação e falasse: cuidarei de sua cria, como se fosse minha, e nos mudaríamos para uma fazenda no interior da França ou da Espanha e cultivaríamos laranjas.”, “Que idiotice!!!!”. Ainda eram três e meia e parecia que tantas coisas já haviam acontecido. O pensando dela não parava, mas não queria buscar algo para fazer, queria que esse algo a encontrasse. Por isso a espera, por isso a música no rádio. A vontade de fazer algo na verdade não existia muito, existia sim uma inquietação interior, uma mistura de café com leite ou chá. Não queriam que ligassem para ela propondo a balada da noite, queria na verdade estar daquele jeito, naquele instante. Aquela espera era somente o nada. E o nada também era bom, pensava ela. O apartamento não estava todo mobiliado ainda, tanto por fazer! Uma poeira suave cobria todo o chão, nele ela escreveu seu nome, sorriu e se deitou no sofá. Acordou umas horas depois. “Nossa! Já são quase sete!”. O frescor da noite entrava pela sua janela, preguiçosa deixou que o silêncio mais profundo ainda penetrasse seus ouvidos. Pegou o jornal e leu a programação da noite da tv. Aquele filme que ela tanto queria ver ia passar, as oito horas. Tomou um banho, comeu um misto quente, se jogou na cama. Agora já era noite, agora não tinha mais que esperar por ela, e nem por nada, não tinha mais transição, somente noite. O telefone toca uma vez, mas ela não atende. Não se sente mais só, está satisfeita por enfim, ter o seu próprio apartamento. E estando sozinha, afinal, não estava só. Estava ela, ali. Ela mesma. Pensou : Solidão enfim, é elementar.

18/07/2006

Maria Ângela

Maria Ângela brincava com o maço de cigarros vazio, com as pontas dos dedos tocava o resto de tabaco que ficou sobre a mesa, e logo depois levava ao nariz para sentir mais uma vez aquele cheiro meio adocicado do fumo, depois colocou na ponta da língua, e o gosto amargo do amoníaco se espalhou pela sua boca rosa e úmida. Levantou-se, pegou o cinzeiro, cruzou a imensidão branca e fria da cozinha da casa de seus pais, acompanhava com os olhos o ladrilho pintado de azul marinho no chão, percorreu o caminho com a mesma leveza e obstinação que um pagador de promessas vai em busca de sua fé. “Até que não foi tão difícil”, pensou com ela. Um restinho da cinza tinha caído no meio de seus dedos dos pés. Achou engraçado e até um tanto sexy aquela sensação sutil do toque das cinzas com a sua pele. Levemente riu para si, virou-se e saiu para a sala.

Ainda era cedo quando Maria Ângela saiu de casa para ir trabalhar aquele dia, o sol parecia estar sorrindo para ela, um dia diferente de fato. Sentia-se mais leve do que nunca, havia tirado, finalmente, um peso de suas costas, uma obrigação. “Quantas são as chances na vida que temos para nos desapegar de tudo aquilo que nos incomoda em algum nível?” Afinal, aquilo também era um ato de desapego, uma chance de provar a si mesma que poderia manejar o curso de sua vida e suas vontades. Pegou um chiclete de menta na bolsa enquanto esperava o ônibus no ponto, mastigava nervosamente aquele pedaço de goma, tentando não somente aproveitar aquele momento, mas, como diriam seus pais: “Tirar a beleza daquilo que nos rodeia”. “Um chiclete de goma não me rodeia... Mas me preenche, me ocupa o tempo.” Tirou mais um chiclete da bolsa, agora de morango e colocou na boca, junto com o outro, criando um volume tutti-frutti, a cada mastigada, uma bola.

Ainda eram 9:30 da manhã, e a sensação de liberdade, parecia que começava a se esvir a cada segundo dentro dela. “ Não é possível, não é possível!!!”, pensamentos obsessivos começavam a cruzar a sua cabeça, um certo mau-humor tomou conta de dela. Tudo o que Maria Ângela queria agora era esquecer da sua escolha, ao mesmo tempo em que desejos compulsivos vinham como ondas dentro dela. Primeiro foi um cafezinho, depois um biscoitinho e mais um chiclete. Já começava a se arrepender do que tinha feito, achou que seria mais fácil, mas, na verdade, a dor e o sofrimento, a sensação de ausência dentro dela eram quase insuportáveis. Sentou na frente do computador e começou a checar seus e-mails, “assim eu me distraio, tiro essa nuvem de mim, esperei tanto pelo momento certo e agora assim, me parece tudo tão errado”. Estava concluindo o pensamento quando Pedro, seu ideal de ser humano encostou-se na sua mesa, bebia nervosamente com pequenos goles uma garrafinha de chá verde. Vegetariano, yogue, ex-drogado, um quase celibato. Já havia passado por tudo e ainda assim, buscava sempre aperfeiçoar “suas técnicas de ascensão espiritual”.

“E ai, Como foi?”.

“Ainda não sei, to me sentindo meio estranha agora, mas acho que é normal, né?”.

“Acho que sim... Seus pais já sabem?”.

“Não, muito cedo pra contar pra eles. E seu eu me arrepender e tudo voltar a ser como antes? A frustração vai ser maior”.

Pedro parecia não ouvindo Maria Ângela, que buscava nesse momento, um ponto de apoio, um ombro amigo. Pedro olhou para ela como se cruzasse sua carne e buscasse um ponto lá ao longe:

“Fica fria, e olha, fala pra sua mãe que ainda está de pé aquele retiro no domingo! Não esquece, ta?”.

Uma golfada de ódio tomou conta dela, ele que estava ali, todo iluminado, com sua garrafinha de chá verde, esnobou todo o seu sentimento. Com a mão direita apertou com força a lateral da sua saia branca. Uma lágrima quase rolou de seus olhos. “Pedro, Pedro, Pedrinho...” Com ódio mandou ele para o inferno mentalmente. Mascou mais um chiclete, era hora do almoço e ainda não tinha fome. Olhou pela janela do escritório, precisava fazer algo contra aquilo tudo: mais um café, mais um biscoitinho. Maria Ângela já não acreditava mais em si mesma, estava no limite da sua razão, pediu a todos os santos que fosse forte o suficiente para superar. Mais um chiclete. A azia começou a queimar o seu estômago vazio: “Não vou agüentar”.Suas mãos suaram frias. Procurou dispersar o pensamento fazendo uma lista com tudo o que precisava fazer naquele dia, longo dia. Ensaiou: “ Pedrinho... Quer fazer uma caridade com sua amiga? Heim? Vamos tomar um chopinho hoje a noite? To precisando tanto desabafar...”. Pedro olhou com piedade para a amiga, fez uma cara de monge e falou: “ Mari, quantas vezes preciso te falar que está semana é a minha semana do não, portanto, não tomarei chopinho...Sorry.”.

Isso já era demais para ela! A única pessoa com quem poderia conversar, lhe virou a cara. Saiu correndo do escritório, lágrimas grossas, agora, corriam em seu rosto. Sentia de tudo: dor, ódio, descontentamento, medo. Não tinha para onde ir, uma força a guiava até a banca de jornal. “Me vê um maço de lucky strike, por favor, normal.” Tremia, nunca imaginou que aquela manhã seria uma das manhãs mais longas de sua vida. Sentia-se entre a vida e a morte. Pagou o maço, sentou ali mesmo, na beira da calçada. Uma poça de água molhou levemente a barra de sua saia, nada mais a importava, agora era só desespero. A primeira tragada a deixou tonta, depois, a fumaça entrava e saia de seus pulmões como cócegas na barriga : “ Foda-se o Pedrinho!”, disse com um sorriso sarcástico, ascendeu mais um cigarro e procurou esquecer aquela decisão inviável.

16/05/2006

++ O Dia de Alberto++

A MANHÃ

Dalva acordou bem cedo este dia, foi ao banheiro, lavou o rosto e voltou para o quarto para acordar o marido “Alberto, levanta que é hoje!”. Alberto levantou-se, olhou para o relógio e satisfeito, sorrindo disse Maravilha, já são nove horas! Temos que acordar as crianças.” E as crianças foram acordadas,ligaram para a escola e confirmaram o que já sabiam: Não iam ter aula aquele dia. Alberto tampouco foi trabalhar, Dalva cancelou o cabeleireiro; impossível sair aquele dia pelas ruas de São Paulo. Todos sentaram na frente da T.V, a tragédia fora anunciada no noticiário da manhã pelo jornalista em tom grave: “Cidade sitiada! Tomaram conta das ruas o comando PCC, tragédia total, muitos mortos e feridos, permaneçam em casa...” etc etc etc. Alberto franze a testa, segura a pequena mão suada de Dalva, esta olhava pela janela em um misto de contemplação e medo.” Será que eles vão invadir a nossa casa? Eu escondi todas as minhas jóias em baixo daquele móvel antigo” “Deixa de bobagem, mulher” diz Alberto. Mas no fundo ele sentia que algo poderia acontecer. “Estamos vivendo uma guerra civil, não temos tempo para pensar em jóias” diz quase sussurrante. Um sentimento de obrigação civil nasce dentro dele, Alberto vai para a garagem, pega algumas correntes e cadeados “Crianças, saiam do jardim!” “Mas papai, não temos aula hoje, a gente combinou de jogar war com o Fredinho”, “ De jeito nenhum!” diz o pai, protetor e emblemático. “Estamos em Guerra! Vão para dentro e liguem o rádio!”. Alberto coloca os cadeados e as correntes em todas as portas que acredita serem mais fáceis de arrombar. “Se aqueles danados chegarem aqui...” range os dentes, com pensamentos terríveis dentro de sua cabeça.

O DIA ANTERIOR

Essas eram as noticias: tinham acabado de bombardear Bagdá mais uma vez, e uma lista fresquinha de prisioneiros de Guantánamo havia sido liberada pelos EUA quando Alberto recebeu o aviso de sair do trabalho mais cedo, “O bicho vai pegar hoje”.Disse o supervisor. Enquanto o mundo estava em chamas Alberto só pensava em ir para casa, jantar com a mulher e os filhos, todo mundo tinha um mau dia na vida. Mas o que ele não esperava era que este dia tinha, finalmente, chegado para ele. Eufórico, ao entrar no carro ligou para Dalva. “Pegue as crianças no inglês, Dalva! Parece que hoje vai ter tiro pro alto! Metralharam tudo”, ao que Dalva pode entender, pois estava com o secador ligado, respondeu prontamente “Mas ainda são quatro e meia, Alberto, que maluquice é essa?”. Alberto faz silêncio na linha, olhou para o horizonte, e tudo o que via era carros e mais carros, com motoristas ao celular. “Dalva, faça o que estou falando”. Havia então chegado o seu dia, concluiu, o dia em que a guerra o cercou, comboios da policia passavam ao seu lado com armas apontadas para todos os lados. Ele sabia que corria risco de vida andando pelas ruas, afinal, já haviam explodido uma escolinha na zona leste da cidade. Fecharam o comércio e os bancos, não teve tempo nem de passar na padaria pra pegar uma pipoca, afinal, a vigília ia começar cedo naquele dia. “É a guerra, é a guerra!” Repetia para si mesmo enquanto tentava chegar em casa. Dalva abriu o portão e se jogou nos braços de Alberto, não havia comoção maior do que a daquele casal, ligados pelo medo e pela iminência da morte. “ Eu ouvi no rádio, Alberto, deram o toque de recolher, estou com tanto medo..” Esta frase, Dalva ouvira em um filme de ação e jamais pensou em repeti-la, ao vivo. Abraçam-se e olharam para o céu. Aquele pôr -do-sol de outono estava mais sinistro do que nunca.

DESFECHO

Trancados dentro de casa o silêncio fazia-se maior, não havia mais pessoas nas ruas, nem uma alma. “Mãe, to com fome...” “Come pipoca meu filho, sua mãe não pode fazer um lanche agora, é a guerra, meu filho, guerra!”. Já eram duas da tarde, e tudo que haviam comido era o café da manhã. “ Em dias como estes temos que pensar em sobreviver e não em comer”, retificou Alberto. Estavam sentados no sofá, a T.V ligada e o rádio ligado. As imagens que viam eram terríveis,mas até agora, nada havia acontecido perto deles. De repente Alberto se assusta, corre para a janela, crê que ouve algo. “ Mulher, rápido, escondam-se!”. Silêncio. Logo em seguida, um miado, “ É só o Zequinha, Beto! Se eles jogarem uma bomba aqui a gente ia ouvir né?”. Alberto não se contenta com a resposta da mulher, Pedrinho, o filho mais novo começava a soltar um gemidinho... “Pai, to com fome e com medo...”. O sentimento bélico tinha tomado conta de todos. Algumas sirenes eram ouvidas ao longe, mas nada, absolutamente nada parecia chegar perto da casa de Alberto. A noite chegou como todas as outras, e a penumbra foi tomando conta da sala, Dalva acende uma vela, mas é censurada por seu marido “ Isso vai chamar a atenção deles”. Mas agora, os meninos aborrecidos foram para o quarto jogar vídeo game, isso deu a chance a Dalva de falar bem francamente com o marido: “ Olha aqui, Alberto, preste bem atenção: Se nenhum tirinho entrar por essa janela, você vai se arrepender! Amargamente!” “ Mas, Dalva meu bem, nunca se sabe..” “ Shhiu! Nem mais um pio, vo na cozinha esquentar uma sopa pros menino.”. Alberto ficou sozinho na sala, no escuro,olhando pela janela a rua deserta lá fora. Talvez, hoje não fosse o dia dele, não era pra morrer, seguir em frente e esperar sempre pelo pior...Um homem prevenido vale por dois. Saiu correndo em disparate até o meio da rua, acendeu uma tocha improvisada com uma camisa velha e o cabo de uma vassoura, que Dalva, quando desse conta ia fiar furiosa. “ Venham seus malditos! Seja lá da onde saírem! Não vou me dar por vencido, jamais!” Espumava pela boca e esbravejava. “ Vocês vão se arrepender...Vão se arrepender...”.

07/04/2006

Sublime

A criação mais bela jamais deve ser real ou tocada. O estado maior de compreensão da beleza deve somente ser dada através do sublime. A primeira sensação é sempre de inacabado, incompleto, o desejo de sugar sua força e acolhê-la deve-se ao fato dessa ausência tênue, quase aveludada. A causa do desejo primordial de compreensão é de fato não compreendê-la jamais, nem apreendê-la, mas senti-la em todos os seus aspectos. Sentir a força entrando pelos seus ouvidos, boca e narinas, num fluxo constante e rítmico. A cada golfada uma retomada dessa sensação indescritível, vinda pelas costas indo até espinha e alojando-se no cérebro.
Alojando-se no cérebro.
No seu recôndito mais profundo e escuro.
E ali ficar latente, pulsando toda aquela informação.
André você fala umas coisas tão bonitas...
Cala boca que eu to criando.
O que existe de mais simples no ser humano do que a percepção sem engajamento algum? O simples reconhecimento do mundo esconde em si todas as respostas para os mistérios mais profundos. Foi a observação que fez o homem. Foram os olhos dos homens que os dotou de inteligência. Depois disso, depois de olhar a pedra, o céu, as montanhas por dias, anos e milênios, o homem encontrou o sublime, adorou ao sol, dançou em círculos e fez do mundo todo uma arte. Das ciências aplicadas ao futebol, tudo isso devido ao pensar além daquele macaco pré-histórico nas savanas. O mundo só é mundo por dois motivos: através dos olhos, e além dos olhos.
Você é tão linda, assim nua.
O que será do futuro? O que será de toda essa tecnologia e arte que criamos? Superaremos o sublime um dia, e quando isso acontecer vamos cair no esquecimento eterno, só haverá repetição, repetição, repetição. A tinta fresca na tela será só um pretexto para começar a sair do tédio, a linha incerta no papel branco, um martelo solto no chão. Haverá um limite e o fim será incontestável. Ai a terra se aproxima do sol, e tudo se fundi. Adeus...
Você parece uma lua branca, sob essa luz. Eu vou embora;
Pra onde? Como assim? E eu?
Você irá também, pode esperar...

20/03/2006

Ausência

AUSÊNCIA: todo tipo de episódio que encena a ausência do objeto amado – sejam quais forem sua causa e duração – e tende a transformar essa ausência em provação de abandono




Estou indo embora. E se foi; sem causa direta e sem efeito nenhum de saída, não podia esperar mais nenhum dia, ou nem ao menos poderia esperar que pudessem os dois compreender o que estava se passando. Cansaço? Tédio? Não, tampouco foi a desilusão, quando foi embora deixou um bilhete na geladeira que eles – ironia do destino, compraram juntos.
Ela entrou em casa aquela tarde com as compras feitas do dia: macarrão, tomate, alho, óleo e um porta velas novo, daqueles que se pendura na janela do quarto, não imaginara (sabia que estavam por um fio) um bilhete na geladeira, jamais! Aquela noite jantou sozinha, não chorou, nem tentou procurá-lo no celular; não adiantaria mendigar sua atenção numa situação dessas. Não entraria em desespero por principio, ela que sempre prezou as atitudes austeras sabia que se perdesse o controle seria para sempre.
Relacionamentos modernos são assim, pensou. Foram dois anos juntos, desses dois anos poderia contar nos dedos quantos momento tiveram realmente juntos, não, não pensava que sairia à francesa numa quarta-feira. Tão efêmero, tão volátil, ele nunca realmente prestou atenção em suas atitudes altruístas. Ela nunca se importou em mostrar-lhe isso, e agora janta sozinha na pequena sala de jantar que se tornara imensa perto da solidão que estava sentindo. Não era saudades aquilo, era apenas ausência, de uma voz, de seus resmungos à noite na cama.
Conheceu ele num barzinho da Vila, tomando chope com as amigas, simpatizou, bebeu mais e foi para casa com ele. Em seis meses estavam morando juntos. Ausência, só isso, não tenho medo de ficar sozinha, mas tenho medo da ausência. É como o escuro que na definição é a ausência de luz, nada mais. Relacionamentos modernos são assim, ressalvou.
Mas não durou muito essa postura, quando começou o jornal nacional, ela entendeu que realmente foi abandonada, fora deixada de lado como um objeto que se esquece num banco da praça. Pegou no telefone mais de uma vez, não teve coragem. Deve estar com a outra, pensou, ou deve estar pensando em mim, consolou-se. Na verdade foi apenas mais um fim, como outros que virão em sua vidinha simples. Ele quem sabe pode voltar para sua vida, ela sabe que o amava, e ainda o ama, e por isso ainda dorme, encolhida, no seu lado da cama.

Apelo

Apelo



Tenho somente um coração
Que fica no lado esquerdo do
meu peito
num só lado do meu corpo
o tenho.

Ah se o tivesse batendo
no meio
e acalentasse o outro
lado esquecido.

palindrome

To day, now, awake
I try to remember the dreams I had
But I can’t remember anything.
I remember that before I sleep, I was thinking of you
And before I think, I just laughed, because I though you would come.
Before, beforehand
I was lunching and I thought
What would I do when at home I arrived?
And take the shoes that I didn’t took off
Before the first gulp, was missing salt
Was missing sugar in my bitter mouth
Because before that, I was crying
Crying because I thought
The whole morning agonizing
When I woke up yesterday
I was nobody.

A última

Quando abri a porta, por debaixo dela havia mais uma carta atravessada no vão. Pela cor do envelope eu soube de imediato que era dela. “André, não existe mais nenhuma extensão entre nós dois. Não existe mais a ponte que tanto nos distanciava. Aquela foi a nossa última dança”... Nunca soube de nenhuma ponte entre nós, nunca me dei conta de tamanha extensão, mesmo quando dormíamos separados na cama, depois de alguma briga, eu não via a extensão; Eu a chamei pra sair e de cara topou; nossa última dança, depois de tantas. Apareceu na porta do prédio dela com aquela meia-calça arrastão, verde, tão moderna. Salto alto preto, o batom vermelho que eu dei pra ela da minha última viajem a Paris, com o qual ela beija todas essas inúteis cartas que me escreve. Os cachos dos seus cabelos, nesta noite, estavam mais bonitos, o que dava a ela uma cara de anjo demoníaco. O que você quer fazer, tomar um drinque? Ah, seilá, que tal sair pra dançar?Queria estrear a minha meia nova... Ela já havia comprado uma nova, senti enfim o distanciamento, aquela coisa de passado quando já não fazemos mais parte da vida do outro. Com a boate cheia, eu sentia o corpo dela toda hora perto do meu, a textura da meia calça, toda vez que minha mão roçava as pernas dela me excitava. E eu só pensava em tê-la, com aqueles cachos sobre seu rosto. Eu ainda via desejo em seus olhos, e no seu modo de dançar toda dada, não pra qualquer um, mas pra mim, ela dançava pra mim aquela noite, sob o som de Depeche Mode, Prince , Rolling Stones. Você tem que aprender a gostar de rock. Ela me dizia isso como se tivesses anos luz de diferença um do outro. E você tem que aprender a falar menos palavrão. A mão dela me pega pela nuca e me convida para o salão, The Cure, aquela música que a gente sempre escutava enquanto transávamos, desta vez ficou só de fundo. Eu só pensava em tirar a meia calça dela, e ela, sentindo que me excitava cada vez mais, fazia que não sabia, e juntava cada vez mais o ventre dela ao meu. Vem pra casa comigo?. André, você sabe....O hálito dela, mesmo que tenha fumado um maço de cigarros, era um hálito doce, macio...Eu agora não posso mais ficar com você.Então porque aceitou sair comigo? Porque você dança bem, e essa será a nossa última dança. Eu não podia acreditar, eu sei que não ficaríamos mais juntos, mas a pré-visão dela, com outro homem... Provavelmente, ela usa a mesma trilha sonora quando vai pra cama com ele, os mesmos motes, as piadinhas. E esses cachos dos seus cabelos, soltos no rosto dela quando dança, fazendo troça mim. Ana, a gente ainda vai se ver? Claro...Claro que sim. E foi assim que ela saiu da minha vida, e que suas cartas começaram a chegar, uma depois da outra, algumas mais alegres, outras já nem tanto. Eu não respondo, e ela continua a mandar, religiosamente, como se eu fosse o seu único cúmplice de tudo o que ela sentia. “A vida me mostrou como bailar, e se algum dia eu te encontrar num bar, você me paga o drinque, e eu te concedo a dança. Saudades, Ana.”

Sala de Espera

Uma sala branca, com sofás nada confortáveis faz com que o silêncio paire de uma forma diferente, angustiante. Esse é o primeiro sentimento que bate: uma angustia fria com cheiro de éter e desinfetante. A principio a espera em uma sala médica nada tem de mais, com enfermeiras passando de lá pra cá a toda hora, soltando sorrisinhos educados e falando baixo pelos cantos: É neste momento que começo a sofrer, o sentimento passa de calmaria a confuso e fico sentada, suando nas mãos esperando sempre pelo pior.
Com o papel de exames nas mãos tenho que preencher um formulário que só serve para me irritar mais: gravidez recente? Não. Aborto? Não. Feridas externas? Não, não e não. Todas essas perguntas apertam meu peito e me lembro da condição humana que é tão pueril. Apesar de ser tudo muito limpo e desinfetado, clínicas e hospitais não deixam de exalar um cheiro medonho de doença e morte; micróbios flutuando no ar, todas as outras pessoas na sala têm a mesma cara de espera e medo, é quase uma tristeza que repuxa da testa até o queixo uma expressão infantil, nem o homem mais forte e competente do mundo sente-se seguro em uma sala de espera.
Srta M...Por favor, me acompanhe. É chegada a hora, eu sigo a enfermeira como um condenado à morte segue o carrasco até a guilhotina. Penso mais uma vez na situação degradante que é ser humano, que é ser vivo com validade, data de expiração. Penso em como uma fortaleza de vitaminas, músculos e ossos perfeitos pode sucumbir-se à força maior da lei da natureza: tudo o que começa um dia acaba. Enquanto tiro a roupa para o exame e ouço descontente as piadinhas das assistentes do médico, percebo que minha pressão vai caindo lentamente, de súbito me ataca uma depressão, minha testa se contraí gravemente, fecho os olhos, respiro fundo e sento para receber segundas ordens.
Srta M ponha os pés assim, isso. Agora se deite, relaxe. Como alguém pode relaxar ou até dormir (creio que os médico esperem de nós até um cochilinho) entre tantos instrumentos metálicos, iodos, ácidos e contrastes. Contraio a musculatura na medida em que a enfermeira pede para relaxar, o médico entra na sala e me faz um aceno como se eu fosse uma estátua, um pedaço de carne com um par de olhos, no caso úmidos e lacrimejantes devido ao nervoso. Por de trás de minha cabeça, ouço barulhinhos de plásticos que se rasgam, soro sendo aplicado em algodão. Fecho os olhos e solto um gemido franco: Vai doer? Claro que não, irei usar uma espátula e depois farei uma raspagenzinha com essa escovinha...- o diminutivo devia ser abolido da linguagem médica, assim como esse ar que eles tem de mentirosos, é claro que vai doer, e é claro que tudo que é inho na verdade é zão.
O pior sentimento que me abate nessas horas é o de impotência, sinto-me como uma criança sem pai nem mãe nessas horas, sendo bulinada por um estranho na rua, sendo invadida por instrumentos frios, texturas que somente posso sentir, mas não consigo ver. Tudo isso dói muito, exames invasivos, biopsias, na cara da enfermeira um tédio sobrenatural, meu olhar só acompanha a mão do médico e em seguida fixa-se em algum ponto no teto também branco. Srta M, agora colocarei um pouquinho de ácido, e você irá sentir uma cólicazinha...Isso...Muito bem, fique quietinha que estamos terminando. O momento final é drástico, começo a chorar compulsivamente, sinto o ardor entre as pernas me queimar a alma, sinto o medo que me assola de estar doente, de estar diferente, de quem sabe morrer até. Associo os piores pensamento à dor.
Quando acaba, sento-me na maca tremendo, tudo tão rápido e interminável, o médico me dá um copo de água, sai da sala sem falar nada, qume me acode é a enfermeira. Tudo bem queridinha? Ta vendo como foi rapidinho? Uhum, me resigno a responder. Ponho minha roupa e saio por onde entrei, lá fora rostos curiosos me olham, sinto-me nua e estuprada por todos eles. Vou embora cabisbaixa, fungando e tudo que há atrás de mim se reduz a uma cólica.

não leio

Não leio mais livros. Não vou mais ao cinema. Não quero saber de exposições aos sábados. Meu último cigarro eu vou fumar daqui a pouco, e então, tudo estará acabado. Retiro-me dessa vida social inerte e vazia. Me entregarei à mais das ineficientes formas de se viver. Vou dormir pouco ou muito, como me convier. Não quero mais atender aos telefonemas, e aquela garrafa de uísque que antes eu bebia com prazer, vou bebê-la em um só trago, em protesto de um homem só, aos nadólogos de Honoré de Balzac que nos obriga a tudo apreciar moderadamente. Um trago, um canapé,uma risada. E assim, infinitamente até o consenso comum de que no fim de um bom papo, não se falou nada, absolutamente nada sobre nada.
Um dia, estava em um bar qualquer (hoje evito falar sobre meu passado social), quando uma rapariga ainda cheirando a leite me estende a mão e me oferece. “A pílula azul ou a vermelha?”, veja bem, não sei até que ponto a minha narrativa é real ou puro devaneio, mas acreditei e quase que sem pensar me entreguei a um suicídio coletivo, pílulas, uísques, orgias, e no fim ser massacrado pelo amor daquela ninfetinha, punhos cortados, sangue, sublime redenção. Olhando nos olhos dela eu disse “Ora garota, não é muito jovem para vender drogas?”. Entenda porque me entreguei. Entenda como sou, eu penso como um perdedor, não me resta saída senão a declarada no parágrafo acima.
A ela restou rir para mim com desdém, e me explicar, como se explica aos velhos aonde se mija, que “ A pílula azul, meu, é...a ilusão, saca? Maia e essas coisas, são as mentiras que vivemos todos os dias. Agora a vermelha, essa é ducaralho, é a pílula da verdade, se você escolher tomar essa,estará escolhendo o caminho certo, da luz e...”, no fim eu já não mais ouvia ela, só me concentrava em duas palavras: verdade e mentira, ilusão e realidade. Sai do bar embriagado e decidido, e de saco cheio de todas essas coisas, mentirinhas e mesquinharias que vivemos. Então resolvi fazer isso, resolvi ser eu mesmo. Me livrar dessa máscara rançosa de falsos bom dias e boa tardes.
Na última vez que sai com uma garota fomos a uma exposição, e eu me vi tentando impressioná-la com palavras intelectulóides copiadas de livros que li, tentei rimar amor com dor da forma mais medíocre. E ela também, uma falsária, abraçando desesperadamente os panfletinhos explicativos da exposição, para poder chegar em casa e vomitar tudo decorado o que aprendeu em sua magnífica tarde. É por essas e outras que me sinto vazio. Olho em volta me autoprovocando um distanciamento e percebo que todos os outros de terno e gravata estão vomitando coisas vazias. Vão chegar em casa e trepar com a mesma mulher a cem anos, e tudo o que eles construíram na vida vai se transformar numa migalha de satisfação.
Não quero mais ouvir os meus cd´s de jazz, os melhores já estão mortos. Sobre o que vamos falar agora? OS diálogos são repetidos ad nauseum , as frases feitas, as piadas nas horas certas. Um trago, um canapé,uma risada. O olhar cintilante do álcool, não permite que as pessoas sejam elas mesmas. As mulheres atrás de seus blush e batons vermelhos, percorrendo os salões da pinacoteca em dia de vernissage. Pisoteando cada pedaço de cultura, cada centímetro da arte ostensivamente com seus saltos alto. Considero tudo isso um desaforo, uma cuspida na minha cara. Não suporto mais conviver no limbo desse mundinho cruel que é o mundo das artes plastificadas, dos intelectuais deprimidos e decadentes em seus sofás de coro recitando Platão, das mulheres gordas de ministros gordos.
Tudo isso e por tudo isso que considero minha vida uma fraude, um erro no caminho do conhecimento. Quero deixar o meu testemunho sobre o tédio que sinto do que as pessoas não consideram tédio. Quando me encontrarem no quarto bêbado e drogado de lexotam, e de tantas outras pílulas vermelhas e azuis. Não se preocupem, não de ocupem de minha merda no lençol. Quero me entregar ao sebo do esquecimento, ignorar todo o mundo que gira lá fora sem a minha estonteante presença. Não quero saber das últimas peças estreadas, nem quero ouvir os gritos distantes de uma ópera qualquer.
Para mim acabou. O mundo já não me pertence. Quero me deteriorar no ócio do esquecimento.

10/02/2006

Suicídio


Vai. Ta afim?
Ainda não sei...Não pensei bem o que fazer depois de tudo.
Depois do quê? Ainda ontem você queria desistir.
Mas eu desisti. Eu sei que desisti. Não tinha motivos para ser quem sou.
Você tinha motivos para ser quem era, agora, que já não pode mais, desista.
Eu já desisti.
Então pula.
Não quero. Quero ser o que sou, e não o que era.
Mas você, agora, é um perdedor.
Melhor perdedor do que um cretino.
A cretinice pelo menos é um motivo. E você só precisa de um. Pula.
Eu ainda posso ter um motivo para ser quem sou agora, mesmo sendo um perdedor.
Um fraco.
Um inútil.
Pula.
Não! Ainda não. Você não entende? Não entende que, seu eu pular agora, eu acabo com tudo, e daí não me sobrará nem motivo, nem cretinice, e o que vou ganhar? Serei um ganhador, enfim?
Você só será honesto consigo mesmo. Se não pular, vai ser um covarde, e isso só será mais um motivo pra não viver...e o ciclo começa de novo, percebe?
Não.
A vida só te iludiu.
Mas por pouco eu me safo.
É.
Então? O que achas.
Acho que a vida já não te pertence. E a sua razão se foi, e os seus nervos estão à flor da pele.
Me passa o uísque.
Quer um comprimido também?
Quero. Dois.
E agora? Vai se sentir melhor? Vai se deixar ir, com todas as regras do jogo.
Vou.
Então pula.
...