18/11/2009

A Liberdade

Devo confessar hoje que sempre quis a sua morte. Sempre achei mais fácil que você morresse a viver do meu lado, assim, tão dependente de meu amor e de minha atenção. Não foi difícil aceitar a ideia logo depois que tudo aconteceu e você jazia longe em algum cemitério da cidade. Mas não ache que a construção desse ideal surgiu assim do nada, não. Essa vontade nasceu aos poucos, não foi no primeiro dia em que te vi, nem quando passei a te amar; ela nasceu quando eu percebi que dentro dos teus olhos havia somente um calor, uma vaga emoção de amor com ternura. Essa chama era muito forte pra mim, e foi ai, num daqueles passeios que costumávamos dar, que eu desejei, plenamente, que você morresse.

Quando nos encontramos pela primeira vez senti que podia me apaixonar, que nossas vidas iriam se encaixar aos poucos, como a de muitos outros casais que se apaixonam sem se apaixonar. Acordar cedo ao teu lado era bonito e feliz, preparar o café, preparar o seu café, lhe beijar a fronte e roçar as mãos em seus cabelos eram tarefas prazerosas que aos poucos se tornou uma rotina não muito dolorida. Eu podia viver a rotina, então. Podia ser igual ou melhor a muitas outras mulheres que encaram a tarefa de ser o par de alguém. Pois bem, no fundo nunca quis ser o par. No fundo, quando chegava em casa no fim do dia e seu rosto expressava o mesmo roteiro da manhã eu sentia que a minha construção mental não ia suportar alicerces tão duvidosos.

Pensando bem agora, consigo ver o exato momento que nasceu o desejo da sua morte, sim, foi naquele passeio, pouco antes do acidente. Já era verão e a tarde caia morosa por de trás dos prédios da Faria Lima, eu estava cansada, exausta, melhor dizendo. Meus olhos pendiam soltos na órbita e meus lábios ficaram fechados o tempo todo. Eu te olhava andando à minha frente, brincando com alguns cachorros da praça, rindo solto de tudo o que te rodeada. Como era possível? Como alguém podia sorrir tanto, por tanto tempo? Enquanto eu me questionava, atônita, você continuava vivendo a parte de tudo aquilo, olhando para as árvores, querendo que eu as olhasse também. Você queria que eu participasse daquilo e ao mesmo tempo era impossibilitado de participar do que acontecia comigo, porque tudo era bonito, a tarde era quente, o verão trazia promessas de mar de areia solta.

Eu desejei a sua morte com a mesma intensidade que você vinha na minha direção com seus olhos castanhos e seus cabelos fartos correndo solto por uma cabeça que eu não entendia. Pensei que seria mais fácil assim, uma separação ia ser muito mais dolorosa do que a morte. A morte é inevitável e depois do luto a vida segue, em linha reta, eu teria a certeza de que não te encontraria mais, que não precisaria atender aos seus telefonemas nem pensar que em algum lugar você estaria chorando de saudades, uivando, sonhando com nossos dias passados. Se nos separássemos, eu teria que conviver com os seus pensamentos, com o fardo do seu sofrimento inundando meu escritório, minha cama, o hall da minha casa. Seria mais do que eu posso suportar. A morte é resoluta, não tem mais nem menos e era isso que eu queria.

Pensei em te matar também, tive pensamentos assassinos articulando uma forma de você não sofrer, uma forma rápida, limpa e digna. Na manhã daquele dia, queria ter pressionado o travesseiro contra a sua cabeça enquanto dormia e roncadva ao meu lado ou então comprar aqueles venenos tão famosos e encher seu café preto de chumbo. Pensei em cortar-lhe o pescoço, injetar-lhe éter nas veias, solta-lo em alto mar, sabendo que você não podia nadar. Além de tudo, não podia nadar, não podia sequer ir para uma ilha. Seus traumas de infância me davam nojo.

Acho que no fundo você percebeu o que eu queria. Durante algum tempo, enquanto o desejo da morte crescia, eu senti que você amadureceu, talvez por sofrer um pouco com a minha ausência, com o meu distanciamento, devia sofrer todas as vezes que disse que te amava e um esgar de riso tentava sair da minha boca. Acho também que você buscou a morte só pra me agradar, só pra me dar o prazer de ver o tamanho do seu amor por mim e do que você era capaz pra me deixar feliz. Você entendeu no fim que não podíamos estar juntos e só a morte seria suficiente para deixar tudo bem. Eu desejei profundamente a tua morte, sendo incapaz de te matar, tudo o que podia fazer era esperar esse dia.

E ele veio, tranquilamente, sem nenhum ruido. Engraçado pensar - e por isso acho que você foi seu próprio cúmplice – que você acordou antes de mim naquele dia, o céu estava nublado e o tempo quente e úmido. A sensação era de chuva apesar do céu estar firme. Você se levantou em silêncio e preparou um suco pra mim, duas torradas com ovo e saiu para a rua. Não disse nada, achei estranho você estar tão atento a tudo. Não me olhou na cama nem me disse bom dia. Simplesmente saiu e deixou a porta destrancada, como que dizendo que voltaria em breve.

Eu me levantei e quando abri as cortinas do quarto o sol já estava a pino, era quase onze da manhã e você não havia voltado. Sentei na sala, liguei o celular, cinco chamadas não atendidas. Retornei a ligação e era de uma delegacia perto de casa. “Senhora X, você é a mulher do senhor Y?”. Fiquei quieta demonstrando que sim, eu era. “ Houve uma acidente de carro na av. Paulista e temo que o seu marido não resista aos ferimentos. A senhora deve encontra-lo no hospital H”. Aquilo tudo já não me interessava mais, estava feito. Me demorei no banho, fiz uma demorada escova, esperei o almoço sair e quando já era fim de tarde fui ao hospital para, enfim, me certificar do que havia acontecido. Ferimentos leves, sofreu pouco, hemorragia cerebral, não ia sobreviver de qualquer jeito.

Assinei papéis, avisei teus pais, paguei a conta do hospital e do funeral logo de adiantado. A Paulista a noite me parecia uma avenida mais infinita do que já era. Um grande rombo se abriu no meu peito, chorei algumas lágrimas. Quando entendi o que havia acontecido de fato, a sensação era então de alívio. Voltei pra casa e a sua cara grande e rosada não apareceu pra me festejar, seu corpo não esquentava a cama e pensei que a liberdade completa devia ser aquilo que eu presenciava naquele momento. Me atirei na cama e cerrei meus olhos com força por vários minutos, senti o silêncio mudo e pesado invadir o ambiente, olhei pela janela e a lua estava redonda rindo pra mim. Era a primeira vez em muito tempo que retribui um sorriso verdadeiro. Liberdade era, finalmente, aquilo que eu sentia.