28/09/2006

Impressões de Madrid II

O que escrever ou como escrever sobre algo que não conhecemos. As ruas, os cheiros, as pessoas.São muito diferentes e muito distantes de meu mundo natural. Envolver-me nestes mundos é como cruzar uma fina película de plástico. Caminho pelas ruas milenares de Madrid, e ao mesmo tempo em que são profundamente cheias de histórias, não me dizem nada, não comparto dessa história. O cinza urbano, este sim me parece muito familiar, o barulho das avenidas, a fuligem da cidade que cresce, a voz dos que caminham na noite.

O sabor da comida cheia de especiarias e azeites desce em meu paladar de um modo peculiar. Sinto falta do tropicalismo de minhas frutas, da fartura do sabor da América. Me parece que a velhice européia impregna até os sabores. A verdura das frutas trazidas de longe, legumes que nem os próprios vendedores sabem o que são: “é fruta chinesa”!, chineses, mais milenares que a própria Madrid, que vivem em seu mundo, mais distante que o meu não fazem questão de se comunicar em espanhol.

Aqui percebo um mundo dentro de outro, por onde passo, ouço línguas que reconheço, outras que me soam como ruídos distantes, de terras que nunca verei. As Europas, Os povos. Em minha rua convivem alegremente colombianos, brasileiros, peruanos, chineses, árabes, indianos, paquistaneses, ingleses e o outros e outros e outros. Quantos são os povos que fazem Madrid? Quantos os sabores que ainda me falta provar?

Venho das Américas, do outro lado do atlântico, na minha terra a gente fala português, ou melhor brasileiro. Lá o meu café tem sabor de café da terra, e as frutas têm um suco doce e melado. Aqui, mesmo que tento, nunca deixarei de comparar, sempre estarei confrontando o novo com o antigo, a colônia com o colonizador. Sou uma estrangeira, mas mesmo assim não sinto aquele medo abissal, a saudade doida. Sinto distância, sinto ela infinita, mas não imortal.

12/09/2006

Impressões de Madrid I

Pela janela do meu quarto, posso ver, de um prédio antigo e um pouco mais baixo que o meu, partes de uma outra sala de jantar. Através da pequena janela arte deco, uma cortina de flores, um par de mãos brincando com uma caneta e um papel. Não existe rosto, só braços, um pedaço de mesa e mistério. A está hora, um cansaço paira sobre a cidade de Madri. Parece que o tempo para, as lojas estão fechadas, o trânsito tranqüilo, o calor escandaloso que permeia todos os ambientes, o gelo se desfaz rápido e a sensação é quase de uma claustrofobia, tamanha a densidade da secura do ar.
Através da outra janela, olho a calçada lateral do prédio menor. Lá fora dois bancos de praça, um senhor pintando umas telas.Sua voz penetra em meu quarto, que será que ele canta? Não consigo decifrar as suas palavras, mas canta alto, com força, olhando para as pessoas que por ele passam. Canta como que para estampar uma certa solidão, uma melancolia que talvez seja mais minha do que dele. Eu o conheço desde ontem, mas acredito que já está nesse banco, nessa mesma esquina, uma eternidade; anos a fio; estações inteiras. Com suas palhetas de cores foscas, pequenos quadros de pinturas abstratas. A sua música me faz companhia. Mas acho que o calor o venceu também, como venceu a toda a cidade. Calou-se, e por ora, só posso observar os seus quadros silenciosos. E tudo o que ouço é ao longe o vagaroso movimento da cidade.

09/09/2006

Bingo


No Bingo

O Bingo do bairro era o melhor da cidade, com letras escritas em néon azul e vermelho: Tropical City, O bingo dos Sonhos. E era dos sonhos mesmo, o prêmio mínimo da linha era 1.000 reais, e a cartela, nossa! Se cantasse bingo antes da 46 bola era batata! 12.000 reais, e depois tranqüilamente podia se ganhar, com paciência, 10.000 a cartela cheia. Ou seja, só louco para perder a oportunidade de sua vida. Foi lá que Dora, Doralice, conheceu Dinda; “ Apelido carinhoso de meus netos, meu nome mesmo é Rosalyce, com ipsulon ” Até os nomes eram parecidos e isso foi só o começo de uma grande amizade. Todas as tardes, Dora e Rosalyce se encontravam lá pelas 3, tomavam um café com conhaque e partiam para o bingo. Lá, entre uma partida e outra trocavam confidências sobre família, eventuais trabalhos, dicas sobre a casa e até, quem diria, coisas do coração. Num desses dias de bingo, Rosalyce ganhou um segundo bingo de 500 reais, e um pouco desapontada fez uma confissão para Dora, “Ai, Dora, ando tão cansada menina...” “ Cansada de quê?” perguntava Doralice, “ De tudo, já não tenho mais idade para cuidar de netos e no fundo, queria era mesmo contratar alguém que pudesse me ajudar...nessas coisas da casa, arrumar meu cabelo, me fazer a sopa de legumes, que Deus sabe onde eu coloquei a receita, aliás, só Deus pra saber metade das coisas que eu ando esquecendo”. Doralice então abriu um sorriso, o mais simpático que pode e como quem se sente a última samaritana disse, baixo, no ouvido de Rosalyce, “ Olha,não te falei isso antes, mas te falo agora, Rosalyce, eu, euzinha aqui, era enfermeira nos meus tempos de menina, claro que hoje não sou tão mais nova que você, mas se quiser adoraria ser sua acompanhante, afinal, somos amigas a tanto tempo, e eu te estimo tanto que...” Parou por um momento, alguém lá no fundo tinha cantado bingo, Dora olhou em volta, pois fazia um silêncio secular e disse: “ Eu posso cuidar de você Rosalyce. A gente faz um bom trato. Que que você acha?” Rosalyce quase chorou de tanta emoção, quanta bondade meu deus, quanta generosidade...Pediu uma água pro garçom e um pouco de sal. “ Ai Dora, que seria de mim sem você”.

Uma Semana Depois

Em poucos dias Doralice já estava íntima da casa de Rosalyce, esta já havia dado as cópias de todas as chaves, incluso a do armário de guloseimas no fundo da cozinha. Doralice fazia seus afazeres normais na casa, o café da manhã, um pouco de arroz com frango no almoço. Às três, as duas partiam para o bingo, onde ficavam até a noite, quando voltavam para a casa de Rosalyce, Dora a preparava a sopa de legumes, que Rosalyce já havia confessado que era melhor que a receita que ela tinha perdido anos atrás.

***
A casa de Rosalyce era uma dessas casas antigas em um dos pontos mais altos e mais centrais do bairro, uma casa que ela tinha herdado do marido quando o pobrezinho faleceu, consta que foi atropelamento, “ Mas eu não tiro da minha cabeça, Dora, que o Joca morreu mesmo foi de mal olhado. Alguém fez que fez, que meu marido morreu, assim, sem mais nem menos.” Dora, no fundo, gostava de Rosalyce, eram boas companheiras de bingo, as conversas sempre duravam horas, infelizmente, e isso realmente pesou na sua decisão: Rosalyce não a pagava muito, o trato tinha sido justo: Um salário e três partidas de bingo ao mês. Rosalyce não podia pagar muito mais que isso, além de ser aposentada, pagava para Dora com um dinheiro que havia guardado por anos, tanto do bingo como o que seu filho mandava todos os meses para ela, para ser usado em um caso de emergência, como este.

A Decisão

Um dia Dora chegou muito mais cedo que o normal na casa de Rosalyce, ao longe ela podia ver que Rosalyce estava distraída brincando com seus netos no jardim. Silenciosamente, foi até o quarto e, com a chave reserva que tinha feito abriu o armário onde Rosalyce guardava suas economias. Muito surpresa ficou Doralice quando, ao abrir o armário, nada encontrou a não ser uma caixa com uma coleção de broches art-deco. Um mau humor tomou conta de Dora, que por todo esse dia mal conversou com Rosalyce. “ Nossa, Dora, que que aconteceu com você hoje? Salgou o arroz menina, que chega que me dói a garganta.”, a este comentário Doralice respondeu dizendo apenas que estava gripada, e por isso errou na dosagem. “ Rosalyce, que quê você acha da gente ir um pouco mais cedo hoje ao bingo? Ouvi dizer que os prêmios das duas vão ser melhores que o prêmios das três da tarde....”, “ Ai, Dora, não sei.” “ Que não sabe, boba” disse Dora, vai querer perder essa change? Lembra da última vez que fomos, foi uma maravilha. Rosalyce se lembrava da sorte que teve aquele dia no bingo, se arrumou, colocou perfume, entraram no carro e foram ao bingo. A todo o momento Doralice ficou distante , Rosalyce tentava animá-la pagando umas cartelas a mais do que de costume. Mas nada, de repente, Dora se levanta bruscamente, vai ao banheiro e quando volta diz “ Vamos querida, vamos embora, este bingo está uma porcaria hoje.” Rosalyce não querendo estragar mais ainda o humor de Dora, e já prevendo a sua sopa salgada no jantar, não disse nada e se foram.

O Acontecimento.

Chegando em casa Rosalyce foi ver tevê e acabou pegando no sono, e Dora foi fazer a sopa. Ao perceber que Rosalyce já dormia, Dora foi à sala, pegou uma almoçada e pensou “ É hoje que eu mato essa velha!”. Bem devagar foi se aproximando de Rosalyce, que roncava profundamente. Mas, inesperadamente, acorda e dá de cara com Dora e uma almofada perto de sua cara.
“ Mas Dora, que quê se passa aqui? O que está acontecendo?”
“Ora Rosalyce, não se faça de boba, cadê todo aquele dinheiro guardado, cadê?’
“ Mas Dora, por que? Por que?”
“ Chega Rosalyce, boa noite.”
“Não Dora, Não..”

A voz de Rosalyce foi sumindo aos poucos, com força Dora sufocava sua cabeça contra a almofada. Ao perceber que a velha estava morta, juntou tudo o que podia e, facilmente descobriu que a velha, oras essas, tinha guardado o resto do dinheiro em um pote de biscoito. “ Que tola” ria-se Dora. Sem pensar duas vezes, pegou o carro e se mandou pro bingo. Pobre Rosalyce, que morreu sem saber ela que o grande prêmio não era o das duas, mas sim os da sete da noite.

07/09/2006

Solidão é Elementar.

Quem mais entraria por aquela porta? Talvez, mas somente talvez, existisse a possibilidade de ninguém entrar lá. Nunca mais. E um dia a espera se tornaria obsessão, e a obsessão solidão e esta em angústia. Daí ela teria que ligar para todas aquelas amigas com as quais não fala há anos. E teria que falar porque está ligando. Seria muito mais difícil do que simplesmente ficar esperando. A eterna espera, a espera poética, a espera dramática, a espera crua, dolorida. Ainda não sabia qual delas estava sentindo. Só sabia que sabia aquilo. Faltava algo mais e isso causava toda essa problemática acima. Quando finalmente começasse a escutar o tic-tac do relógio de pulso escondido na gaveta de calcinhas, era hora de sair do transe, de largar todas essas idéias de lado. “Morar sozinha é uma merda”.Essa hora crucial que é as três da tarde do sábado, quando tudo para, momento de transição da parte do dia, para a parte da noite. Não queria mais preencher mais essas três horas que faltavam para o anoitecer com coisas úteis. “Terei que esperar, esperar, esperar”.Talvez por que a sua mudança tenha sido tão repentina, não havia passado em sua cabeça que existiria o momento da solidão, quando os móveis, o carpete, a lâmpada começam a tomar conta do espaço de um modo particular, como se esses objetos não fizessem parte somente da estrutura da casa, mas de si. Eles, mais que ela, pertenciam àquele mundo. Levantou-se, ligou o rádio, ensaiou olhar para a cozinha e ver se lhe apetecia lavar os pratos. Não, aquilo não dava tesão nela, para ela, limpar a casa para preencher o tempo era coisa de Madalena, e ela, obviamente, não cabia àquele posto. Olhou para porta, pelo olho-mágico podia ver a vizinha entrando no apartamento da frente com as compras da semana, e seus três filhos carregando, cada uma sacolinha: maçãs da Mônica, suquinhos de soja, balinhas de hortelã. “ Será que seu tivesse filhos ia ser melhor? Me sentiria menos só, menos angustiada?” , “ Talvez fosse pior, mãe solteira, esperando que algum se compadecesse da minha situação e falasse: cuidarei de sua cria, como se fosse minha, e nos mudaríamos para uma fazenda no interior da França ou da Espanha e cultivaríamos laranjas.”, “Que idiotice!!!!”. Ainda eram três e meia e parecia que tantas coisas já haviam acontecido. O pensando dela não parava, mas não queria buscar algo para fazer, queria que esse algo a encontrasse. Por isso a espera, por isso a música no rádio. A vontade de fazer algo na verdade não existia muito, existia sim uma inquietação interior, uma mistura de café com leite ou chá. Não queriam que ligassem para ela propondo a balada da noite, queria na verdade estar daquele jeito, naquele instante. Aquela espera era somente o nada. E o nada também era bom, pensava ela. O apartamento não estava todo mobiliado ainda, tanto por fazer! Uma poeira suave cobria todo o chão, nele ela escreveu seu nome, sorriu e se deitou no sofá. Acordou umas horas depois. “Nossa! Já são quase sete!”. O frescor da noite entrava pela sua janela, preguiçosa deixou que o silêncio mais profundo ainda penetrasse seus ouvidos. Pegou o jornal e leu a programação da noite da tv. Aquele filme que ela tanto queria ver ia passar, as oito horas. Tomou um banho, comeu um misto quente, se jogou na cama. Agora já era noite, agora não tinha mais que esperar por ela, e nem por nada, não tinha mais transição, somente noite. O telefone toca uma vez, mas ela não atende. Não se sente mais só, está satisfeita por enfim, ter o seu próprio apartamento. E estando sozinha, afinal, não estava só. Estava ela, ali. Ela mesma. Pensou : Solidão enfim, é elementar.