21/09/2005

Bula continuação As manhãs

“Indicado para o estado de depressão psíquica e física,originada de excesso de trabalho mental por problemas de origem emocional como preocupação, ansiedade, irritabilidade, medos, sustos e contrariedades. Nos casos de esgotamento, tristeza, baixa vitalidade e hipersensibilidade aos estímulos sensoriais.”
Foi tudo o que ela pode ler na bula de seu remédio, antes de engolir a primeira drágea verde e vermelha, sentada no sofá deixou a que o frasco escorregasse de suas mãos e permaneceu olhando fixamente a parede cor de verde abacate. Aquilo era uma das coisas que a irritavam todos os dias assim ,desencadeando um processo que por fim a levara a comprar aqueles comprimidos. Sua vida tinha a mesma cor triste daquela parede de textura meio granulada de abacate maduro.
Aos poucos se levantou do sofá e começou a observar as outras mulheres que passavam pela rua, todas elas carregavam uma das indicações da bula dentro de si, sem exceções, pensava ela, mesmo que tentasse ser uma pessoa completamente normal não poderia jamais esquecer de seu fardo, de seus obstáculos com a vida. Considerava-se uma mulher de verdade, completa, sabia muito bem quais eram os seus deveres, mas pouco sabia de suas fraquezas. Ainda de roupão não se lembrava mais do que tinha comido ontem antes de dormir e este pensamento tomou-lhe um tempo enorme, tinha que passar o tempo de alguma forma, começou a preparar um café forte, sentou novamente no sofá e pensou.
Não tinha mais a beleza de algum tempo atrás, quando tudo o que ela mais ansiava estava ainda latente em seu corpo, uma ansiedade quente e úmida. Sorriu para a pilha de roupas que tinha que lavar como se aquilo fosse tudo o que restava de seu breve passado. Não queria lembrar como começou, tampouco da forma como simplesmente acabou; por isso os comprimidos, a reclusão e a espera angustiante de seu efeito.
Coragem e fraqueza eram dois sentimentos que se entrelaçavam dentro dela. Teve a coragem de tirar um filho, de enfrentar sozinha a descida a um pequeno inferno, e a fraqueza foi justamente o seu ópio, a saída mais simples para uma pergunta sem resposta. Ninguém soube, talvez isso tenha facilitado não pensar no futuro, pretender que nada acontecerá no instante seguinte. Ele nunca soube o que aconteceu, nem nunca saberá o que aconteceria. Gostava dele, mas seria inútil estar ao seu lado, seria incapaz de conviver com seu olhar sempre vagueando pelas coisas do mundo; então saiu de uma vez de sua vida, levando consigo o seu único segredo.
Quanto tempo passara e ela nem tinha percebido, quase uma estação inteira. São os remédios, argumentou. Os remédios contra a espera, contra a necessidade da busca e contra todo tipo de sentimento relevante em sua vida.
O telefone toca. Ana já sabia quem era, sempre soube, pois nunca mais atendera a um telefonema...que dia era hoje?
--Alô... Eu sei quem é.
-- Preciso te ver. Quer dizer, preciso falar com você sobre umas coisas que andei pensando, que... enfim, bater um papo.
Num instante passou-se tantas coisas na cabeça de Ana. Pensou em como o amor podia se transformar em ódio, em como pequenas coisas juntas podem se transformar no maior de seus pesadelos: manias, tom de voz, as roupas, sempre as mesmas roupas.
--- Olha, se você não tiver...
--tenho sim, mas fala logo que eu agora to costurando umas calças.
Ela sempre mentia. Nunca gostou de dar satisfações, mínimas que fossem, e também nunca gostou de muita sinceridade, acreditava ser algo muito pedante.
-- Te amo, Ana.
Silêncio.
-- Só isso?
--Não, quero dizer, te amo mesmo, no duro. Te amo mais do que me odeio. Te amo mais que a minha vida, você pra mim Ana, é...
Não esperava que ele fosse tão longe, um vácuo se rompeu dentro dela sugando todo o ambiente ao seu redor, o tempo parou. Foi pega de surpresa: ele sabia. Ela havia esquecido há muito tempo de tudo e mesmo assim como uma sombra ele reapareceu. Tomou mais dois comprimidos.
-- Esse filho é meu não é? Então Ana, agora eu sei...eu sei que posso...
Desligou o telefone imediatamente, fechou os olhos, flashbacks começaram a dar voltas em sua cabeça, os comprimidos finalmente fizeram efeito. Ela se deitou no chão e deixou ser tomava por todos os pensamentos. Simples pensamentos, agora tudo era passado.

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