21/09/2005

As manhãs

Acordou como se acorda em todas as manhãs: cinza. Leu seu jornal da forma como mais lhe agradava o ler, sentado ao lado da porta de entrada de modo que pudesse abrir todo o jornal e ver a sua configuração, de um anglo bem particular seu. Às vezes a tinta do jornal lhe deixava marcas nas batatas das pernas cruzadas, mas só as percebia quando ia colocar uma calça qualquer do armário. Ele não era nada, só um observador. Não tinha intenção nenhuma de tirar as marcas, somente as cobrir. Saía encardido do suor da noite, não que fossem quentes, mas eram noites de sonhos tremendos, desconfigurados.
Essa noite sonhou com seu pai e sua irmã, ele nunca aparecia nem como primeira nem como terceira pessoa, tentou chamá-los mas foi inútil, eles iam embora por um caminho que não terminava nunca, e ele não teve a coragem de gritar por eles. Não teve vontade. Assim vivia, assim se dava por vivo, sabia que se respirasse e expirasse algumas vezes teria que continuar andando e falando, pois uma coisa sempre leva a outra, e acordar aquele dia e ler o jornal daquele angulo o fez fazer uma pequena curva no tempo. Ao invés de pôr uma regata, colocou uma camiseta levemente manchada por gotas de café, discretamente se olhou no espelho, pela primeira vez em muito tempo teve uma visão de si.
Tomou água, depois uns goles de coca-cola da geladeirinha que ficava no seu quarto. Ficou mais um minuto parado, olhando para um quadrinho que tinha na parede que um amigo, bêbado, desenhara uma vez e o dera, como prova de uma amizade alcoolizada.Alguma coisa se passava na sua cabeça, era uma idéia muito indefinida ainda, tinha medo de ter idéias, gostava somente de lembrar das idéias dos outros e se odiar por nunca ter tido uma, um impulso, um momento de grande histeria. Mas esse momento estava próximo, ele sentia juntamente com o ácido da coca-cola rasgando o estômago ardido da azia.
Mudou de lado na cama, agora estava sentado vendo da janela uma árvore, precisava de espaço, de grandeza. Pegou o telefone:
-- ....Alô? Ana...aqui é...
-- Eu sei quem é.
-- Preciso te ver. Quer dizer, preciso falar com você sobre umas coisas que andei pensando, que... enfim, bater um papo.
Silêncio.
Ana, era como o seu jornal, ela se estendia por toda a sua vida de um angulo estranho, de qualquer lugar que ele estivesse não conseguiria nunca vê-la por inteiro, completa. Tinha medo de pessoas completas.
--- Olha, se você não tiver...
Foi interrompido por uma voz firme, dura, resistente. Ana era a sua resistência, sua única batalha.
-- Tenho sim, mas fala logo, agora não posso sair daqui, to costurando uma calça nova..
Ana sempre mentia.
-- Te amo, Ana.
Silêncio.
-- Só isso?
--Não, quero dizer, te amo mesmo, no duro. Te amo mais do que me odeio. Te amo mais que a minha vida, você pra mim Ana, é...
E parou por ai, sabia que não podia continuar falando, tudo tinha um limite em sua vida e sua força parara por ai.
Ana não falou mais. Ele também não. Um ouvia do outro a respiração, ele olhando pela janela a árvore lá fora, ela sentada no chão chorava baixinho com a mão na barriga. Não podia, não queria falar.
-- Esse filho é meu não é? Então Ana, agora eu sei...eu sei que posso...
A ligação caiu, ela desligara a última ligação que havia entre eles. Dentro dele uma sensação plena de estática, esperou demais pelo momento certo. Dentro dela o vazio de três meses atrás.

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