12/12/2007

Vidas Ordinárias IX

João.


Foi no dia 25 de dezembro, morreu com o peru da noite anterior ainda entalado na garganta. A fartura lhe havia sido cara, ou não? Foi num cruzamento, atropelado ainda com o peru no bucho, na manhã seguinte da ceia de natal. Não teve tempo nem de apreciar os restos amanhecidos daquele jantar. Delírios literários. Morreu e ponto. A diferença única daquela morte foi o peru. Que rechonchudo reluzia na mesa, dourado, suculento, indecente de tão grande.

Não era para menos uma morte tão súbita e inesperada. A culpa recaiu sobre a tia que havia insistentemente lhe oferecido mais um prato, um repeteco daquela delicia. Come vai, mais um pedacinho não vai te matar. Mas matou. João está morto e ponto. Foi a gula? Até agora a família se indaga. Se a gula matasse, deveria ter matado antes, bem antes, o tio. Aquele sim merecia morrer tamanha sua gulodice. Sua fome não tinha tamanho. Tinha que ter sempre tudo do bom e do melhor, e bebia e fumava e trepava com a vizinha que todo mundo sabia que dava pro tio. Que era casado, mas sua gula não o deixava parar. Não morreu e está até hoje matando o seu desejo desavergonhado.

Outra possibilidade é que João se suicidara. Morte desejada. O seu presente de natal esse ano tinha sido mais um livro sobre espiritismo, a vida de Allan Kardec, espírito famoso. Não que João fosse espírita, mas achava que, já que as assombrações estão por ai mesmo, melhor saber com quem se está lidando. Pois bem, João pode ter morrido de pena, pena de comer um bicho tão grande e bobo como era o peru. Um bicho que ao se olhar, percebia-se uma alma leviana. E talvez, é apenas uma hipótese, morreu de dó. O danado do bicho não perdoou João e o levou diretamente ao encontro de sua morte. Num cruzamento, logo de manhã, João deu seu último suspiro, lembrando de como foi doce e cruel aquela última ceia. Morreu no delírio da lembrança, mas satisfeito.