30/08/2007

Diálogo

(Um trago)

Você sabe, já leu aquele texto do Cortazar...Sobre os coelhos? Sobre aquele cara que vomita coelhos e sem nenhuma razão ele passa a amá-los? Ele passa a amá-los porque é aquilo mesmo, uma coisa de dentro pra fora, só sua, pessoal.

Mas ele se mata no fim, quer dizer, eu acho que ele se mata. Foi o que eu entendi.

( Um trago)

É engraçado tudo isso. Uma amiga minha falou que após ela cair da cama, ela teve uma revelação. E essa revelação só poderia acontecer nestas circunstâncias, você ta me entendendo? Não existe revelação que fuja a esta regra, e ela ainda completou: “Aquilo foi místico, tanto quanto o meu desconhecido fim do dia”.

Tanto quanto o meu desconhecido fim do dia. O real deixa de ser real quando a gente vive o passado ou o futuro, que não existem. Você não acha isso estranho? Saber que, depois de agora é tudo ainda uma grande mentira.?

(A fumaça do cigarro envolve o quarto, o olhar pára fixo no teto)

Eu, particularmente, não acredito que exista um futuro. Essa forma desconexa e esquizofrênica que nos faz comprometer-nos com coisas que também desconhecemos. É tão frágil essa linha que une o agora e o que será que, o melhor seria permanecer, nesta posição, eternamente.

Mas daí eu me lembro que ainda não comprei as flores nesta semana. A semana é futuro, virtual, portanto não existe, mas eu tenho que fazê-la existir, senão jamais teria comprado flores na semana passada, e aí não poderia as comprar essa semana.

Mas as flores, assim como o meu fim do dia, morrem, suavemente, semana após semana.

(trago longo)

Eu deveria comprar cristais ao invés de flores. Cristais são bonitos e super baratos. Cristais me lembram chapada diamantina, e essas coisas da natureza que me acalmam. Verde, verde, verde. Azul, flores, formigas.

Eu sei que isso ta parecendo pedantismo, mas diante das circunstâncias, só me resta pensar no horizonte além da minha janela anti-ruídos.

(piscada, tragada, o olhar fixo na janela)

Existem pessoas que não gostam da natureza? Sim? Não? Eu acho que sim, acho que existem pessoas que abominam este contato direto com a fauna e a flora. Só de pensar em tirar o sapato, caminhar a esmo na beira de uma praia as deixam aflitas .

Mas tudo bem. Tudo bem mesmo. Ninguém tem que gostar da natureza, porque nós somos a natureza. De algum modo, caminhar sobre a grama e admirar os pássaros não passam de afirmações redundantes. A gente não se nega, da mesma forma que é impossível eu falar: eu não existo.

E daí? Você ainda ta me ouvindo? Eu to te irritando?

(levanta da cama, abre a janela)

Acho que eu deveria escrever tudo isso que to te falando em algum lugar, seria legal não esquecer todas essas coisas bonitas e sensíveis que estou pensando. Seilá, começar a escrever um livro existencialista que detonaria Sartre e Nietzsche. Mandar pra algum concurso da faculdade de letras, ficar famosa enfim.

Gozar de todo o prazer da vida pública, ser chamada para coquetéis e jantares. Usar um nome artístico como La Femme Trousseau, por exemplo.

Uma coisa bem difícil, assim ninguém vai ter coragem de me perguntar porque cargas d’água eu resolvi ser escritora.