24/04/2007

Terapia

Ela se deitou no sofá, esticou as pernas até alcançar uma almofada e ficou se olhando deitada no espelho da parede. Uma parte do vestido dela escorregou de seu colo e tocou o chão. Com uma das mãos segurou a ponta dele e ficou brincando, contornando os desenhos da cerâmica do assoalho. Os dedos dos pés estavam inquietos, torcia e retorcia, estralava, esticava.
Preciso de terapia.
O outro braço tampou seu rosto. Só se via o perfil do seu nariz fino, de seus lábios finos de seu queixo fino. Ela toda parecia um risco de grafite numa tela branca.
Preciso de... De alguma coisa. Talvez de uma bicicleta. Mas acho que a terapia seria o mais apropriado.
A água do vasinho de flores estava escura e com partículas de sujeira, a planta ainda tentava viver, umas margaridas.
Você tá me escutando?
Uhum.
Você realmente escuta alguma coisa do que eu falo?
Terapia, você falou que precisava de terapia.
Não, eu falei que você me entedia, e que por isso eu preciso de terapia.
O seu rosto se virou pra mim, os olhos fechados, os dedos dos pés voltaram a se contorcer mais rápido.
Então você mentiu, você é uma mentirosa.
Seus olhos se abriram e me fitaram pra logo em seguida fecharem de novo, o braço voltou a cobrir seu rosto.
Jamais acredite nas palavras de um poeta.
Você nunca me falou que era uma poeta. Nunca vi nada seu escrito em lugar algum.
Eu não menti, mas eu precisava nos salvar. Me salvar, talvez. Precisava dizer pra mim mesma que você valia a pena.
E então, qual a conclusão que você chegou?
Que você é um chato.
Depois de três anos?
É.
Você não precisa de uma terapia, o que você precisa é de uma foda.
A gente fodeu ontem.
Não de mim, da vida. Sua cretina.
Você não pode ter medo de minhas palavras. Quando eu disse que te amava, aquilo foi um sonho e eu tive que fazer dele uma realidade e agora, agora eu cansei. Cansei de ser sua mulherzinha, cansei de jurar amor e de olhar pra frente e ver somente isso. Eu, você, eu, você, eu, você. A eternidade é coisa de religião, eu não quero morrer nesse paraíso, nesse apartamento, olhando pra você e pensando...
Pensando que foi tudo um erro?
Arrependimento é coisa de gente babaca.
Pensando o quê?
Eu não posso ser sua, é isso.
Ela se sentou, acendeu um cigarro e deu uma tragada bem longa. Depois se levantou e como se fosse somente ume espírito foi embora, deixando um perfume de lavanda e tabaco. Mas antes de fechar a porta ainda pude ouvir:
Preciso parar de fumar também, se não for o tédio vai ser o cigarro que vai me matar.

Amor: Filosofia ou Suicídio?

23/04/2007

Vai, a vida não te merece.
Pois já te acompanha nas noites a vagar,
O tédio, amigo célebre.

Tão absurdo seria festejar
O morrer não tão calmo da beleza estéril
No fim da noite, no bar.

Aquele frio ibérico
Que dá quando se está só
Como a navalha ou o mistério.

Aquele fino pó
Que permeia a luz
Aquela nota em sol ou dó.

Já não faz sentido o que te conduz
Ou te conduzia
Porque neste fim não há luz.

E ao mesmo tempo, a vida
Bandida e sagaz
Te espreita na saída.

O Abismo da Tristeza

Hoje não me sinto triste nem melancólica, sinto-me apenas vazia de qualquer sentimento depressivo ou alegre. Nada, neste momento transformaria essa sensação em algo explicável. Seja como for sinto às vezes vontade de chorar, como se chorar abrisse um canal estancado no meu peito, se me aquieto e ouço os meus órgãos pulsarem vem junta essa vontade de me desabar para um centro como água que entra por um ralo e no momento seguinte volta. Esse movimento de expiração e inspiração que me toma quando paro, mas não penso, apenas paro para sentir tudo isso que não estou sentindo.

Ontem desabei, mas não soube porquê. No fundo tenho medo de perceber que de fato sei de tudo, tenho consciência da negritude que está tomando conta do meu interior, a ausência de luz de calor ,de algo que me consuma. Ontem abandonei-me a mim mesma, tornei-me mãe e filha de meu corpo pois não quero outros braços não quero outras explicações, quero somente a inércia, a placidez da água parada em um lago, a imobilidade de uma pequena estátua de jardim.

Não me obrigo a achar explicações para tudo, deve sempre haver uma reflexão sem a necessidade de um fim, de um ponto final. Refletir incessantemente pode levar-me a um estado de beatitude, desenrolar meu ser sobre o universo infinitamente até torna-me um ponto de luz, uma molécula sem começo nem fim. É este o meu objetivo agora, ser compactada afim de que a minha energia se aglomere e então eu possa reviver. Assim me sinto neste momento semente em estado latente, mas sem energia suficiente para florescer, por isso a inércia, por isso desabar-me, por isso apenas refletir, refletir e refletir.

Se houver uma explicação, se houver em algum momento um pouco de sanidade racional onde eu possa finalmente esclarecer-me, este momento não será agora. Pois adormeço por dentro e não estou sonhando.

Ensaio

Ana,

Eu não saberia te dizer qual é a verdadeira confusão que me devasta. Acho que tudo aconteceu naquela festa, quando o dia foi surgindo bem devagar compreendi que não estava mais livre, que nunca na verdade eu fui livre de nenhum destes pensamentos que agora te escrevo.

Quem veio primeiro, o amor ou o desejo? Quando olho nos seus olhos, a única luz que ainda tenho nestes meus dias, eu me perco profundamente nas suas pálpebras, nos seus cílios, nas suas entranhas. O tempo e o espaço se fundiram em uma fina linha e segue em direção ao infinito. Então quando penso no passado, um mar calmo e morno, penso que lá não existia opções, nem caminhos. A tranqüilidade é monocrômica, a tranqüilidade é um vasto verde, ou azul profundo, silencioso.

Na verdade, estou mentindo. Permita-me começar outra vez. Às vezes me perco demasiado dentro da licença poética.


***

Ana, querida Ana.

Por que aquela manhã foi tão diferente das outras? Eu sei, não deveria jamais começar uma frase com uma pergunta dessas. Mas ela se faz necessária para que eu possa continuar e para que você possa compreender todos os outros motivos desse meu afastamento da realidade.

Aquele foi o dia em que meu coração se libertou. Engraçado que eu consigo ver agora em seus lábios um pequeno sorriso. Pode rir Ana, a brancura de seus dentes é um conforto pra mim. Pois bem, meu coração não se libertou somente, mas ele quase parou. Te juro de pés juntos, que já chorei todas as lágrimas e que agora minha redação é pura análise.

Ah Ana, se você pudesse tocar com seus dedos o meu interior, ia sentir o espaço vazio que se criou. Um abismo dentro de mim. Estas palavras são muito grandes para explicar a sutileza.


***

Ana,


Há muito não sinto isso dentro de mim, e parece tão bom. Me olho no espelho e só vejo graça em meus gestos. Aquilo que está longe já quase não me pertence, já quase esqueci o que é aquele cheiro humano do sal e dos azeites corpóreos. Me olho no espelho e vejo duas pessoas, vejo um cânon, vejo aventura. Não, não estou amando, estou sentindo.