18/07/2006

Maria Ângela

Maria Ângela brincava com o maço de cigarros vazio, com as pontas dos dedos tocava o resto de tabaco que ficou sobre a mesa, e logo depois levava ao nariz para sentir mais uma vez aquele cheiro meio adocicado do fumo, depois colocou na ponta da língua, e o gosto amargo do amoníaco se espalhou pela sua boca rosa e úmida. Levantou-se, pegou o cinzeiro, cruzou a imensidão branca e fria da cozinha da casa de seus pais, acompanhava com os olhos o ladrilho pintado de azul marinho no chão, percorreu o caminho com a mesma leveza e obstinação que um pagador de promessas vai em busca de sua fé. “Até que não foi tão difícil”, pensou com ela. Um restinho da cinza tinha caído no meio de seus dedos dos pés. Achou engraçado e até um tanto sexy aquela sensação sutil do toque das cinzas com a sua pele. Levemente riu para si, virou-se e saiu para a sala.

Ainda era cedo quando Maria Ângela saiu de casa para ir trabalhar aquele dia, o sol parecia estar sorrindo para ela, um dia diferente de fato. Sentia-se mais leve do que nunca, havia tirado, finalmente, um peso de suas costas, uma obrigação. “Quantas são as chances na vida que temos para nos desapegar de tudo aquilo que nos incomoda em algum nível?” Afinal, aquilo também era um ato de desapego, uma chance de provar a si mesma que poderia manejar o curso de sua vida e suas vontades. Pegou um chiclete de menta na bolsa enquanto esperava o ônibus no ponto, mastigava nervosamente aquele pedaço de goma, tentando não somente aproveitar aquele momento, mas, como diriam seus pais: “Tirar a beleza daquilo que nos rodeia”. “Um chiclete de goma não me rodeia... Mas me preenche, me ocupa o tempo.” Tirou mais um chiclete da bolsa, agora de morango e colocou na boca, junto com o outro, criando um volume tutti-frutti, a cada mastigada, uma bola.

Ainda eram 9:30 da manhã, e a sensação de liberdade, parecia que começava a se esvir a cada segundo dentro dela. “ Não é possível, não é possível!!!”, pensamentos obsessivos começavam a cruzar a sua cabeça, um certo mau-humor tomou conta de dela. Tudo o que Maria Ângela queria agora era esquecer da sua escolha, ao mesmo tempo em que desejos compulsivos vinham como ondas dentro dela. Primeiro foi um cafezinho, depois um biscoitinho e mais um chiclete. Já começava a se arrepender do que tinha feito, achou que seria mais fácil, mas, na verdade, a dor e o sofrimento, a sensação de ausência dentro dela eram quase insuportáveis. Sentou na frente do computador e começou a checar seus e-mails, “assim eu me distraio, tiro essa nuvem de mim, esperei tanto pelo momento certo e agora assim, me parece tudo tão errado”. Estava concluindo o pensamento quando Pedro, seu ideal de ser humano encostou-se na sua mesa, bebia nervosamente com pequenos goles uma garrafinha de chá verde. Vegetariano, yogue, ex-drogado, um quase celibato. Já havia passado por tudo e ainda assim, buscava sempre aperfeiçoar “suas técnicas de ascensão espiritual”.

“E ai, Como foi?”.

“Ainda não sei, to me sentindo meio estranha agora, mas acho que é normal, né?”.

“Acho que sim... Seus pais já sabem?”.

“Não, muito cedo pra contar pra eles. E seu eu me arrepender e tudo voltar a ser como antes? A frustração vai ser maior”.

Pedro parecia não ouvindo Maria Ângela, que buscava nesse momento, um ponto de apoio, um ombro amigo. Pedro olhou para ela como se cruzasse sua carne e buscasse um ponto lá ao longe:

“Fica fria, e olha, fala pra sua mãe que ainda está de pé aquele retiro no domingo! Não esquece, ta?”.

Uma golfada de ódio tomou conta dela, ele que estava ali, todo iluminado, com sua garrafinha de chá verde, esnobou todo o seu sentimento. Com a mão direita apertou com força a lateral da sua saia branca. Uma lágrima quase rolou de seus olhos. “Pedro, Pedro, Pedrinho...” Com ódio mandou ele para o inferno mentalmente. Mascou mais um chiclete, era hora do almoço e ainda não tinha fome. Olhou pela janela do escritório, precisava fazer algo contra aquilo tudo: mais um café, mais um biscoitinho. Maria Ângela já não acreditava mais em si mesma, estava no limite da sua razão, pediu a todos os santos que fosse forte o suficiente para superar. Mais um chiclete. A azia começou a queimar o seu estômago vazio: “Não vou agüentar”.Suas mãos suaram frias. Procurou dispersar o pensamento fazendo uma lista com tudo o que precisava fazer naquele dia, longo dia. Ensaiou: “ Pedrinho... Quer fazer uma caridade com sua amiga? Heim? Vamos tomar um chopinho hoje a noite? To precisando tanto desabafar...”. Pedro olhou com piedade para a amiga, fez uma cara de monge e falou: “ Mari, quantas vezes preciso te falar que está semana é a minha semana do não, portanto, não tomarei chopinho...Sorry.”.

Isso já era demais para ela! A única pessoa com quem poderia conversar, lhe virou a cara. Saiu correndo do escritório, lágrimas grossas, agora, corriam em seu rosto. Sentia de tudo: dor, ódio, descontentamento, medo. Não tinha para onde ir, uma força a guiava até a banca de jornal. “Me vê um maço de lucky strike, por favor, normal.” Tremia, nunca imaginou que aquela manhã seria uma das manhãs mais longas de sua vida. Sentia-se entre a vida e a morte. Pagou o maço, sentou ali mesmo, na beira da calçada. Uma poça de água molhou levemente a barra de sua saia, nada mais a importava, agora era só desespero. A primeira tragada a deixou tonta, depois, a fumaça entrava e saia de seus pulmões como cócegas na barriga : “ Foda-se o Pedrinho!”, disse com um sorriso sarcástico, ascendeu mais um cigarro e procurou esquecer aquela decisão inviável.