20/03/2006

Ausência

AUSÊNCIA: todo tipo de episódio que encena a ausência do objeto amado – sejam quais forem sua causa e duração – e tende a transformar essa ausência em provação de abandono




Estou indo embora. E se foi; sem causa direta e sem efeito nenhum de saída, não podia esperar mais nenhum dia, ou nem ao menos poderia esperar que pudessem os dois compreender o que estava se passando. Cansaço? Tédio? Não, tampouco foi a desilusão, quando foi embora deixou um bilhete na geladeira que eles – ironia do destino, compraram juntos.
Ela entrou em casa aquela tarde com as compras feitas do dia: macarrão, tomate, alho, óleo e um porta velas novo, daqueles que se pendura na janela do quarto, não imaginara (sabia que estavam por um fio) um bilhete na geladeira, jamais! Aquela noite jantou sozinha, não chorou, nem tentou procurá-lo no celular; não adiantaria mendigar sua atenção numa situação dessas. Não entraria em desespero por principio, ela que sempre prezou as atitudes austeras sabia que se perdesse o controle seria para sempre.
Relacionamentos modernos são assim, pensou. Foram dois anos juntos, desses dois anos poderia contar nos dedos quantos momento tiveram realmente juntos, não, não pensava que sairia à francesa numa quarta-feira. Tão efêmero, tão volátil, ele nunca realmente prestou atenção em suas atitudes altruístas. Ela nunca se importou em mostrar-lhe isso, e agora janta sozinha na pequena sala de jantar que se tornara imensa perto da solidão que estava sentindo. Não era saudades aquilo, era apenas ausência, de uma voz, de seus resmungos à noite na cama.
Conheceu ele num barzinho da Vila, tomando chope com as amigas, simpatizou, bebeu mais e foi para casa com ele. Em seis meses estavam morando juntos. Ausência, só isso, não tenho medo de ficar sozinha, mas tenho medo da ausência. É como o escuro que na definição é a ausência de luz, nada mais. Relacionamentos modernos são assim, ressalvou.
Mas não durou muito essa postura, quando começou o jornal nacional, ela entendeu que realmente foi abandonada, fora deixada de lado como um objeto que se esquece num banco da praça. Pegou no telefone mais de uma vez, não teve coragem. Deve estar com a outra, pensou, ou deve estar pensando em mim, consolou-se. Na verdade foi apenas mais um fim, como outros que virão em sua vidinha simples. Ele quem sabe pode voltar para sua vida, ela sabe que o amava, e ainda o ama, e por isso ainda dorme, encolhida, no seu lado da cama.

Apelo

Apelo



Tenho somente um coração
Que fica no lado esquerdo do
meu peito
num só lado do meu corpo
o tenho.

Ah se o tivesse batendo
no meio
e acalentasse o outro
lado esquecido.

palindrome

To day, now, awake
I try to remember the dreams I had
But I can’t remember anything.
I remember that before I sleep, I was thinking of you
And before I think, I just laughed, because I though you would come.
Before, beforehand
I was lunching and I thought
What would I do when at home I arrived?
And take the shoes that I didn’t took off
Before the first gulp, was missing salt
Was missing sugar in my bitter mouth
Because before that, I was crying
Crying because I thought
The whole morning agonizing
When I woke up yesterday
I was nobody.

A última

Quando abri a porta, por debaixo dela havia mais uma carta atravessada no vão. Pela cor do envelope eu soube de imediato que era dela. “André, não existe mais nenhuma extensão entre nós dois. Não existe mais a ponte que tanto nos distanciava. Aquela foi a nossa última dança”... Nunca soube de nenhuma ponte entre nós, nunca me dei conta de tamanha extensão, mesmo quando dormíamos separados na cama, depois de alguma briga, eu não via a extensão; Eu a chamei pra sair e de cara topou; nossa última dança, depois de tantas. Apareceu na porta do prédio dela com aquela meia-calça arrastão, verde, tão moderna. Salto alto preto, o batom vermelho que eu dei pra ela da minha última viajem a Paris, com o qual ela beija todas essas inúteis cartas que me escreve. Os cachos dos seus cabelos, nesta noite, estavam mais bonitos, o que dava a ela uma cara de anjo demoníaco. O que você quer fazer, tomar um drinque? Ah, seilá, que tal sair pra dançar?Queria estrear a minha meia nova... Ela já havia comprado uma nova, senti enfim o distanciamento, aquela coisa de passado quando já não fazemos mais parte da vida do outro. Com a boate cheia, eu sentia o corpo dela toda hora perto do meu, a textura da meia calça, toda vez que minha mão roçava as pernas dela me excitava. E eu só pensava em tê-la, com aqueles cachos sobre seu rosto. Eu ainda via desejo em seus olhos, e no seu modo de dançar toda dada, não pra qualquer um, mas pra mim, ela dançava pra mim aquela noite, sob o som de Depeche Mode, Prince , Rolling Stones. Você tem que aprender a gostar de rock. Ela me dizia isso como se tivesses anos luz de diferença um do outro. E você tem que aprender a falar menos palavrão. A mão dela me pega pela nuca e me convida para o salão, The Cure, aquela música que a gente sempre escutava enquanto transávamos, desta vez ficou só de fundo. Eu só pensava em tirar a meia calça dela, e ela, sentindo que me excitava cada vez mais, fazia que não sabia, e juntava cada vez mais o ventre dela ao meu. Vem pra casa comigo?. André, você sabe....O hálito dela, mesmo que tenha fumado um maço de cigarros, era um hálito doce, macio...Eu agora não posso mais ficar com você.Então porque aceitou sair comigo? Porque você dança bem, e essa será a nossa última dança. Eu não podia acreditar, eu sei que não ficaríamos mais juntos, mas a pré-visão dela, com outro homem... Provavelmente, ela usa a mesma trilha sonora quando vai pra cama com ele, os mesmos motes, as piadinhas. E esses cachos dos seus cabelos, soltos no rosto dela quando dança, fazendo troça mim. Ana, a gente ainda vai se ver? Claro...Claro que sim. E foi assim que ela saiu da minha vida, e que suas cartas começaram a chegar, uma depois da outra, algumas mais alegres, outras já nem tanto. Eu não respondo, e ela continua a mandar, religiosamente, como se eu fosse o seu único cúmplice de tudo o que ela sentia. “A vida me mostrou como bailar, e se algum dia eu te encontrar num bar, você me paga o drinque, e eu te concedo a dança. Saudades, Ana.”

Sala de Espera

Uma sala branca, com sofás nada confortáveis faz com que o silêncio paire de uma forma diferente, angustiante. Esse é o primeiro sentimento que bate: uma angustia fria com cheiro de éter e desinfetante. A principio a espera em uma sala médica nada tem de mais, com enfermeiras passando de lá pra cá a toda hora, soltando sorrisinhos educados e falando baixo pelos cantos: É neste momento que começo a sofrer, o sentimento passa de calmaria a confuso e fico sentada, suando nas mãos esperando sempre pelo pior.
Com o papel de exames nas mãos tenho que preencher um formulário que só serve para me irritar mais: gravidez recente? Não. Aborto? Não. Feridas externas? Não, não e não. Todas essas perguntas apertam meu peito e me lembro da condição humana que é tão pueril. Apesar de ser tudo muito limpo e desinfetado, clínicas e hospitais não deixam de exalar um cheiro medonho de doença e morte; micróbios flutuando no ar, todas as outras pessoas na sala têm a mesma cara de espera e medo, é quase uma tristeza que repuxa da testa até o queixo uma expressão infantil, nem o homem mais forte e competente do mundo sente-se seguro em uma sala de espera.
Srta M...Por favor, me acompanhe. É chegada a hora, eu sigo a enfermeira como um condenado à morte segue o carrasco até a guilhotina. Penso mais uma vez na situação degradante que é ser humano, que é ser vivo com validade, data de expiração. Penso em como uma fortaleza de vitaminas, músculos e ossos perfeitos pode sucumbir-se à força maior da lei da natureza: tudo o que começa um dia acaba. Enquanto tiro a roupa para o exame e ouço descontente as piadinhas das assistentes do médico, percebo que minha pressão vai caindo lentamente, de súbito me ataca uma depressão, minha testa se contraí gravemente, fecho os olhos, respiro fundo e sento para receber segundas ordens.
Srta M ponha os pés assim, isso. Agora se deite, relaxe. Como alguém pode relaxar ou até dormir (creio que os médico esperem de nós até um cochilinho) entre tantos instrumentos metálicos, iodos, ácidos e contrastes. Contraio a musculatura na medida em que a enfermeira pede para relaxar, o médico entra na sala e me faz um aceno como se eu fosse uma estátua, um pedaço de carne com um par de olhos, no caso úmidos e lacrimejantes devido ao nervoso. Por de trás de minha cabeça, ouço barulhinhos de plásticos que se rasgam, soro sendo aplicado em algodão. Fecho os olhos e solto um gemido franco: Vai doer? Claro que não, irei usar uma espátula e depois farei uma raspagenzinha com essa escovinha...- o diminutivo devia ser abolido da linguagem médica, assim como esse ar que eles tem de mentirosos, é claro que vai doer, e é claro que tudo que é inho na verdade é zão.
O pior sentimento que me abate nessas horas é o de impotência, sinto-me como uma criança sem pai nem mãe nessas horas, sendo bulinada por um estranho na rua, sendo invadida por instrumentos frios, texturas que somente posso sentir, mas não consigo ver. Tudo isso dói muito, exames invasivos, biopsias, na cara da enfermeira um tédio sobrenatural, meu olhar só acompanha a mão do médico e em seguida fixa-se em algum ponto no teto também branco. Srta M, agora colocarei um pouquinho de ácido, e você irá sentir uma cólicazinha...Isso...Muito bem, fique quietinha que estamos terminando. O momento final é drástico, começo a chorar compulsivamente, sinto o ardor entre as pernas me queimar a alma, sinto o medo que me assola de estar doente, de estar diferente, de quem sabe morrer até. Associo os piores pensamento à dor.
Quando acaba, sento-me na maca tremendo, tudo tão rápido e interminável, o médico me dá um copo de água, sai da sala sem falar nada, qume me acode é a enfermeira. Tudo bem queridinha? Ta vendo como foi rapidinho? Uhum, me resigno a responder. Ponho minha roupa e saio por onde entrei, lá fora rostos curiosos me olham, sinto-me nua e estuprada por todos eles. Vou embora cabisbaixa, fungando e tudo que há atrás de mim se reduz a uma cólica.

não leio

Não leio mais livros. Não vou mais ao cinema. Não quero saber de exposições aos sábados. Meu último cigarro eu vou fumar daqui a pouco, e então, tudo estará acabado. Retiro-me dessa vida social inerte e vazia. Me entregarei à mais das ineficientes formas de se viver. Vou dormir pouco ou muito, como me convier. Não quero mais atender aos telefonemas, e aquela garrafa de uísque que antes eu bebia com prazer, vou bebê-la em um só trago, em protesto de um homem só, aos nadólogos de Honoré de Balzac que nos obriga a tudo apreciar moderadamente. Um trago, um canapé,uma risada. E assim, infinitamente até o consenso comum de que no fim de um bom papo, não se falou nada, absolutamente nada sobre nada.
Um dia, estava em um bar qualquer (hoje evito falar sobre meu passado social), quando uma rapariga ainda cheirando a leite me estende a mão e me oferece. “A pílula azul ou a vermelha?”, veja bem, não sei até que ponto a minha narrativa é real ou puro devaneio, mas acreditei e quase que sem pensar me entreguei a um suicídio coletivo, pílulas, uísques, orgias, e no fim ser massacrado pelo amor daquela ninfetinha, punhos cortados, sangue, sublime redenção. Olhando nos olhos dela eu disse “Ora garota, não é muito jovem para vender drogas?”. Entenda porque me entreguei. Entenda como sou, eu penso como um perdedor, não me resta saída senão a declarada no parágrafo acima.
A ela restou rir para mim com desdém, e me explicar, como se explica aos velhos aonde se mija, que “ A pílula azul, meu, é...a ilusão, saca? Maia e essas coisas, são as mentiras que vivemos todos os dias. Agora a vermelha, essa é ducaralho, é a pílula da verdade, se você escolher tomar essa,estará escolhendo o caminho certo, da luz e...”, no fim eu já não mais ouvia ela, só me concentrava em duas palavras: verdade e mentira, ilusão e realidade. Sai do bar embriagado e decidido, e de saco cheio de todas essas coisas, mentirinhas e mesquinharias que vivemos. Então resolvi fazer isso, resolvi ser eu mesmo. Me livrar dessa máscara rançosa de falsos bom dias e boa tardes.
Na última vez que sai com uma garota fomos a uma exposição, e eu me vi tentando impressioná-la com palavras intelectulóides copiadas de livros que li, tentei rimar amor com dor da forma mais medíocre. E ela também, uma falsária, abraçando desesperadamente os panfletinhos explicativos da exposição, para poder chegar em casa e vomitar tudo decorado o que aprendeu em sua magnífica tarde. É por essas e outras que me sinto vazio. Olho em volta me autoprovocando um distanciamento e percebo que todos os outros de terno e gravata estão vomitando coisas vazias. Vão chegar em casa e trepar com a mesma mulher a cem anos, e tudo o que eles construíram na vida vai se transformar numa migalha de satisfação.
Não quero mais ouvir os meus cd´s de jazz, os melhores já estão mortos. Sobre o que vamos falar agora? OS diálogos são repetidos ad nauseum , as frases feitas, as piadas nas horas certas. Um trago, um canapé,uma risada. O olhar cintilante do álcool, não permite que as pessoas sejam elas mesmas. As mulheres atrás de seus blush e batons vermelhos, percorrendo os salões da pinacoteca em dia de vernissage. Pisoteando cada pedaço de cultura, cada centímetro da arte ostensivamente com seus saltos alto. Considero tudo isso um desaforo, uma cuspida na minha cara. Não suporto mais conviver no limbo desse mundinho cruel que é o mundo das artes plastificadas, dos intelectuais deprimidos e decadentes em seus sofás de coro recitando Platão, das mulheres gordas de ministros gordos.
Tudo isso e por tudo isso que considero minha vida uma fraude, um erro no caminho do conhecimento. Quero deixar o meu testemunho sobre o tédio que sinto do que as pessoas não consideram tédio. Quando me encontrarem no quarto bêbado e drogado de lexotam, e de tantas outras pílulas vermelhas e azuis. Não se preocupem, não de ocupem de minha merda no lençol. Quero me entregar ao sebo do esquecimento, ignorar todo o mundo que gira lá fora sem a minha estonteante presença. Não quero saber das últimas peças estreadas, nem quero ouvir os gritos distantes de uma ópera qualquer.
Para mim acabou. O mundo já não me pertence. Quero me deteriorar no ócio do esquecimento.